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sábado, 2 de julho de 2016

Aberrações "democráticas" (1)

     
Nu, Amadeo Modiglianni
 
   Tenho como referência a ideia de que todos os regimes políticos são bons desde que o pilar da sua doutrina resida no respeito universal de todos e cada um. O que não significa que tenha de ser satisfeita, de cada um a vontade, sendo certo que há bens individuais invioláveis no centro dos quais está o da dignidade.
 
   Ao governo anterior reconheço a capacidade de, sob custódia dos credores, inverter o processo de descontrolo das contas públicas, enfrentando os poderes da rua, da comunicação social, dos tribunais e da oposição política, num inédito desprendimento eleitoral que deveria ter sido reconhecido e louvado. A inversão do défice, de quase 20 mil ME anuais em 2010 das contas externas, para um excedente de cerca de 3 mil ME em 2013 , 2 mil ME em 2014 e 3 mil ME em 2015, graças ao aumento das exportações da ordem dos 25% e à estabilização das importações que registaram um aumento da ordem dos 3 %, de 2011 a 2014, estancou o endividamento global da economia nacional que atingira níveis incomportáveis. As reformas introduzidas a muito custo no setor público e privado, permitiram a redução do défice orçamental do Estado da ordem dos 15 mim ME anuais, desenhando o caminho para o equilíbrio das contas públicas sem o qual o país permanecerá na condição de protetorado. Prescindiu-se da última tranche do financiamento, constituiu-se uma reserva financeira de salvaguarda assinalável, pôs-se em marcha um programa de reestruturação silenciosa da dívida pública, transformando dívida de curto prazo em dívida de longo prazo de menor custo, graças às inacreditáveis taxas de juro, historicamente baixas, para as quais contribuiu a política  de compra de ativos do BCE. Paulatinamente, o PIB inverteu a dinâmica recessiva  em 2012 e 2013, aumentando 0,9 % em 2014, 1,5 % em 2015, perspetivando-se, à data,  1,5 % em 2016 e 1,7 % em 2017. Recuperou-se a confiança externa e o investimento refletido na subida do rating da dívida pública pela DBRS e na perspetiva positiva das outras agências, que permitiu ao BCE manter a sua política de compra de dívida soberana, alargada recentemente à dívida corporate. A economia tinha entrado nos "carris" e a dinâmica de reformas a prosseguir, gradualmente, aliviaria a economia dos incomportáveis encargos paralisantes e empobrecedores induzidos pelo setor público, aumentando a liquidez do setor empresarial e dos consumidores Estavam criadas as condições para a redução do desemprego e melhorias salariais, dentro da margem de produtividade alcançada. Mas...a luta partidária e ideológica tem outras lógicas que não passam necessariamente pela independência e pelo progresso.
 
   Posto isto, reconhecendo-lhe o mérito, aceitando que o governo de Passos Coelho não tinha margem de manobra - o país tinha perdido o acesso aos mercados de financiamento -, a verdade é que os danos infligidos no tecido empresarial, sobrepondo-se ao violento processo de reestruturação posto em marcha pelo governo de Sócrates estimulado pela Comissão Europeia, foram catastróficos. Por toda a parte assistimos à falência de boas empresas, muitas delas bem estruturadas, de bom nível tecnológico e até exemplares, e ao cortejo de desgraças inerente, sem que se tenha vislumbrado, até ao momento, uma reestruturação empresarial qualitativamente superior. A caça ao subsídio, induzido pela UE, parece constituir a prioridade do talento empresarial, em vez da capacidade e empenho de produção de bens úteis e rentáveis para os cidadãos. A desertificação empresarial atingiu quase todas cidades, numa tendência crescente de destruição das economias locais e de movimentos migratórios para os grandes centros urbanos e para outros países.
 
   Se é verdade que a dureza das reformas foi imposta do exterior ao governo de Passos Coelho, há alguns aspetos que eu, enquanto simples e insignificante cidadão, não lhe perdoo, ainda que não tenha sido o criados de algumas das medidas que me indignam; desde logo as notificações automáticas! As penhoras automáticas de casas e contas bancárias por qualquer entidade pública ou privada! Como é possível que a ânsia de cobrança coerciva do Estado e algumas entidades privadas tenha proporcionado uma barbaridade destas? Como é possível que se considere notificado um cidadão sem que este tenha, efetivamente, tido acesso ao conhecimento da notificação? Como é possível que se autorize a penhora da habitação de uma família por dívidas, mesmo que marginais, ao fisco ou à banca, porque o infeliz cidadão perdeu o emprego, num contexto de crise geral conhecido? Isto era, sim, uma prática na Idade Média quando se enviavam para as casas de trabalho obrigatório, ou cortavam as orelhas, ou, simplesmente, se enforcavam os vagabundos; vagabundos estes que não eram mais que camponeses que tinham ficado sem terras, sem trabalho e sem pão em consequência das crises induzidas pelas guerras, pelas pestes ou pela inovação tecnológica. Como é possível, que se tenha criado um algoritmo que transforma dívidas às concessionárias das autoestradas, de cêntimos em dezenas de milhares de euros, destruindo a vida do cidadão, para engorda daquelas e dos cofres públicos? Como é possível que qualquer divergência do cidadão relativamente ai fisco se tenha tornado numa questão de vida ou morte? Como é possível que se transforme, nominalmente, em criminoso, o cidadão que não exige a fatura da bica e a mantenha guardada durante quatro anos, à ordem do fisco? Tudo isto é próprio, sim, de um Estado totalitário, não daquela ao qual  compete a tarefa de proteger a dignidade do seu soberano, o cidadão. Sinto muito, mas, não denegando todas as virtudes que reconheço a Passos Coelho, a cordialidade, o controlo emocional, a firmeza e a resiliência, nem a adequação da estratégia global do seu governo, reconheço-lhe, nestes casos, uma perigosa falta de cultura humanista que, num contexto favorável, poderá fazer resvalar o regime para o autoritarismo. É aqui que a democracia se pode revelar providencial. Uma cura de oposição pode ajudar a atenuar certas "perigosidades". Mas também pode abrir o caminho aos mais desvairados populismos e ressentimentos. 
 
 
A ver vamos, ou seja, estamos! 

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