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Olhando Para Dentro 1930-1960 (Bruno Cardoso Reis) (Em História Política Contemporânea, Portugal 1808-2000, Maphre - nota...

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quarta-feira, 19 de julho de 2017

O Estrangeiro (Albert Camus)

   Albert Camus é um escritor que trago "atravessado" desde o tempo da minha passagem por Cape Town, quando o Director local da Alliance Francaise, no decurso de uma espécie de exame aos meus conhecimentos da língua francesa, me falou dele. Com o passar do tempo, percebi que se trata de um dos mais importantes escritores contemporâneos de idioma francês.
 
   Talvez o prefácio de Jean Paul Sarte seja mais valioso do que a obra em si mesma. Esta, na minha insignificante opinião, parece-me constituir um eficaz meio de aprendizagem para aspirantes a escritores: Capítulos pequenos, frases curtas, termos simples, profusão de vírgulas criteriosamente colocadas, eficácia na transcrição das citações ou diálogos. História de um personagem "sem história", a quem a vida corria pachorrentamente, sem ambições nem sonhos, limitando-se à observação do quotidiano e a deixar-se ir pelo acaso. A aparente serenidade com que aceitou a morte da mãe, decorrente do estranho reconhecimento de que nada mais tinham a dizer um ao outro, a ausência de amor a Maria, apesar do relacionamento íntimo que mantinham, a complacência, ou resignação, ou a indiferença com que aceitava o seu casamento com ela, mostra um personagem incapaz de afetos vinculativos, profundos, ou sequer, ódio - o assassínio do Árabe, que o condenaria à morte, foi, sobretudo, motivada pelo acaso; medo e descontrolo. Apesar de tudo isto, só uma convicção o habitava; a inutilidade da Fé como meio de alívio do medo que sentia pela proximidade da morte. Pelo meio, descreveu com mestria e sensibilidade o meio envolvente, em especial, os episódios passados à beira-mar com Maria quase nos fazendo-nos, partilhar da quietude e fascínio do mar.  Salamano e o seu cão representam uma excelente metáfora do absurdo quase comovente; em permanente guerra com o cão, já sarnoso, o solitário Salamano, que há muito perdera a mulher, não podia passar sem ele, sofrendo imenso com o seu desaparecimento.
 
   Que nos quis dizer Camus? Não sei!, Num estilo quase maniqueísta, binário; sim, não, talvez que o nenhum tipo de amor é suficientemente importante para viver; ou, simplesmente, que não vale a pena viver. No entanto, quando submetido aos rigores da prisão, percebeu que bastaria um dia de vida para "sustentar" cem anos de cárcere. Um aparente paradoxo; por um lado, para Camus, um dia de vida parece igual a décadas de vida, significando total ausência de espectativa, por outro, num dia de vida conseguia vida para cem anos, indiciando inusitada capacidade de disfrutar dela, dos seus infinitos cambiantes e detalhes, decorrente, afinal, da privação da liberdade, ou seja, da drástica restrição de vida.
 
Introdução de Sartre:
 
   Camus somente propõe e não se inquieta com justificar o que, por princípio, é injustificável.
 
   A arte é uma generosidade in útil...
 
   ...por debaixo dos paradoxos de Camus encontro algumas avisadas observações de Kant com respeito à "finalidade sem fim do belo".
 
Citando Camus no "Mito de Císifo": Um homem é mais um homem pelas coisas que cala do que pelas coisas que diz.
 
É que, o silêncio, como diz Heiddegger, é o modo autêntico da palavra. Só se cala aquele que pode falar.
 
Para Camus o drama humano é, ao invés, a ausência de toda a transcendência: "Não sei se este mundo tem um sentido que me ultrapassa. Mas sei que não conheço esse sentido e que, de momento, me é impossível conhecê-lo.
 
De O Estrangeiro:
 
   Compreendi então que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se maçar. De certo modo, isto era uma vantagem.
 
   A mãe costumava dizer que nunca se é completamente infeliz. Mesmo na prisão continuava a concordar com ela, quando o céu se coloria e que um novo dia entrava na minha cela.
 
   Não há, no fundo, nenhuma ideia a que não nos habituemos.
 
   Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do mundo.
 
Peniche, 19/07/2017  

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Os evangelhos Apócrifos (VII conclusão) (France Quéré, editorial Estampa)



SEGUNDA PARTE

Descida de Jesus aos Infernos

 
   Não me suscita qualquer interesse esta segunda parte, embora reconheça que possa dar uma exotérica e metafórica peça de teatro. Trata do impacto de Jesus no Inferno; Satanás e Hades (nem sei qual a diferença entre ambos; parece que um será o diabo e outro o inferno), discutem, recriminando-se mutuamente, pelos seus insucessos na difusão do mal na Terra, por intervenção de Jesus, cuja crucificação tinha inviabilizado definitivamente os seus projetos maléficos.

   …A voz retiniu de novo: “Abri as vossas portas.” Ouvindo esta palavra pela segunda vez, Hades perguntou, como se não soubesse: “Quem é este rei da glória?” Os mensageiros do mestre disseram-lhe: “É o Senhor, o forte, o corajoso, o Senhor herói das batalhas.” Mal tinha pronunciado estas palavras, as portas de bronze quebraram-se, e as barras de ferro partiram-se, e todos os mortos foram desligados das cadeias que os retinham, e nós com eles. E o rei da glória entrou, sob a forma de um homem, e as trevas do inferno tornaram-se esplendorosas.

    Logo Hades Gritou: “Fomos vencidos! Ai de nós! Mas quem és tu que possuis tal poder e tal império? Quem és tu, tu que aqui vieste isento de falta? Tu que pareces pequeno e realizas grandes coisas, tu que és humilde e sublime, escravo e mestre, soldado e rei, tu que comandas os mortos e os vivos? Tu foste crucificado e deposto no túmulo, e eis-te de novo livre, e aniquilaste o nosso reino. És tu esse Jesus de quem Satanás, nosso chefe supremo, nos falou, dizendo-nos que a cruz e a morte te fariam herdar o mundo inteiro?”
  
   Então, o rei da glória agarrou pelo alto da cabeça o chefe supremo, Satanás, e entregou-o aos anjos dizendo: "Metei-lhe cadeias nas mãos e nos pés, no pescoço e na boca." Depois dando-o a Hades disse: "Toma-o e vigia-o rigorosamente até ao meu regresso."

   Hades, então, recriminou Satanás por ter feito crucificar Jesus, uma vez que Ele desceu ao Inferno despojando-os, e que tal poder era previsível pela grande quantidade mortos que tinha ressuscitado.

   E enquanto eles falavam, o Senhor abençoou Adão, marcando a sua testa com o sinal da cruz. Teve o mesmo gesto com os patriarcas e os profetas, os mártires e os antepassados, e imediatamente os mandou sair do inferno, e enquanto caminhava, os santos padres cantavam por trás deles e diziam: "Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor , Aleluia.. A ele o louvor de todos os santos.

FIM

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Os evangelhos Apócrifos (VI) (France Quéré, editorial Estampa)


   cont.
O Crucificado

   Espantou-se o Centurião, glorificando-o e considerando-o justo, retiraram as multidões batendo no peito, afligiram-se Pilatos e a sua mulher, indiferentes manifestaram-se os Judeus perante aquele, amigos de Jesus e mulheres que o tinham acompanhado mantiveram-se à distância, e foi José de Arimateia, membro do Concelho, com Fé no Reino de Deus, que, inesperadamente, tendo pedido a Pilatos o corpo de Jesus, o desceu da cruz e, enrolando-o num lençol branco, o depositou num túmulo novo, que preparara para si próprio e se chamava “O Jardim de José”. E foi este José, o José de Arimateia, que, além de Nicodemo, este moderadamente, enfrentou e recriminou os Judeus quando estes os procuravam bem como aos apóstolos e a todos os que tinham ajudado Jesus diante de Pilatos, agora escondidos, para os confrontar: - Fica a saber que apenas a hora nos impede de te castigar, pois o sábado começa. Mas, sabe-o também, tu nem sequer uma sepultura mereces. Deitaremos a tua carne aos pássaros do céu. Disseram-lhe os Judeus. Retorquiu José: Vós falais com a arrogância de Golias, que insultou o Deus vivo e o santo David….Na verdade, receio que a cólera (divina) já se abata sobre vós e sobre os vossos filhos, como dissestes. Tal ousadia custou-lhe a prisão e a sentença de morte pelos mesmos que tinham exigido a crucificação de Jesus.

Deposição de Cristo, Paolo Varonese

(É curioso como, quer os Apóstolos, quer outros partidários de Jesus, se mantiveram, discretamente, à distância, após a condenação daquele, sem um único gesto de revolta! Terá sido por medo? Por debilidade da crença? Ou antes resignação perante o conhecimento da inevitabilidade das provações Divinas, transmitidas, metaforicamente, por Jesus, na Última Ceia? E porque ficou José de Arimateia, o único que defendeu Cristo abertamente, com risco da própria vida, na obscuridade da doutrina católica?)

   Ora sucedeu que, quando os sumos sacerdotes, mandaram buscar José para assistir à deliberação sobre o tipo de morte que lhe aplicariam, verificaram que tinha desaparecido, apesar da porta permanecer selada com a chave na posse de Caifás! O povo, estupefacto e aterrado, finalmente, deixou em paz os que, perante Pilatos tinham defendido Jesus.

   Ainda, os sumos sacerdotes, digeriam estes acontecimentos procurando uma forma de controlar os danos, quando os soldados que guardavam o túmulo de Jesus - para impedir os discípulos deste levarem o seu corpo -, os informaram das coisas extraordinárias que tinham presenciado, e os deixara semimortos, em que, pela meia-noite, um anjo resplandecente, vindo do céu, rolou a pedra do túmulo e, sentando-se sobre ela, anunciou às mulheres, cuja identidade desconheciam e que iam cuidar e velar o corpo de Jesus, que este tinha ressuscitado e estava na Galileia, pedindo-lhes para avisarem os seus Discípulos.
Ressurreição

   Incrédulos e temerosos, os sumos sacerdotes, subornaram os guardas para divulgarem que tinham sido os discípulos de Jesus a levar o seu corpo enquanto dormiam, sossegando-os, caso o assunto chegasse aos ouvidos do Governador, pois eles se encarregariam de os proteger.

   O caso é que, entre os sacerdotes e Levitas, Adas e Ageu, mais um doutor, vindos da Galileia, relataram aos chefes da sinagoga ter visto Jesus, na montanha Milkom, falar aos seus Discípulos, instruindo-os para difundirem a sua doutrina pelo mundo inteiro, batizarem os convertidos e fazendo-lhes milagres, conferir-lhes imunidade a venenos e capacidade de agarrar serpentes, sendo elevado aos céus, falando-lhes ainda.
Jesus na montanha Milkon

   Contrariados, os sacerdotes reagiram com aspereza, fazendo-os jurar silêncio, subornando-os, dando-lhes de comer e beber e reenviando-os para a Galileia acompanhados de três dos seus sequazes. Desconcertados com tais relatos, sacerdotes, chefes da sinagoga e anciãos, não descortinando explicações para os mesmos, limitaram-se a balbuciar que não se deviam fiar em incircuncidados. Foi então que Nicodemos sublinhou a genuinidade do povo do Senhor, que, sob juramento, tinha testemunhado os mesmos acontecimentos, lembrando-lhes os ensinamentos das Sagradas Escrituras acerca da elevação aos céus de Elias. Sugeriu então que mandassem procurar Jesus por todo o território de Israel, para o caso de ter sido levado por um espírito, para uma das montanhas. Sem sucesso. Encontraram José de Arimateia, mas não ousaram prendê-lo.

   Os sacerdotes e companhia, felizes por terem notícias de José e desejosos de saberem o que se tinha passado com ele, mandaram emissários entregar-lhe uma mensagem onde lhe pediam para regressar à sua família, retratando-se, tratando-o por pai José e confessando-se transidos por não o terem encontrado na sala onde o tinham prendido. José mostrou-se feliz com o teor da mensagem, sentindo-se, finalmente, livre de perigo.  Hospedou-os, rezou com eles pela manhã e regressou a Jerusalém montado numa jumenta, tendo sido recebido pelo povo com grandes manifestações de alegria. - A paz esteja contigo. Benvindo sejas. E ele respondia: A Paz esteja convosco! Recebeu-o Nicodemo que, radiante, ofereceu um festim em sua casa, em sua honra para a qual convidou Anás, Caifás, os Anciãos, os sacerdotes e os levitas, que decorreu num ambiente de festa.
Maria Madalena

   No dia seguinte, sacerdotes, entre os quais Anás e Caifás, chefes da sinagoga e levitas, regressaram a casa de Nicodemo, onde José ficara hospedado, pedindo-lhe, invocando as escrituras, que lhes contasse o que se tinha passado aquando do seu desaparecimento. José então explicou que, pela meia-noite de sábado, quando se encontrava a rezar - tinha sido trancado na décima hora de 6ª feira -, a casa onde estava entrou em grande convulsão, tendo ficado quase cego com uma espécie de clarão, caindo por terra apavorado. Então, alguém lhe pegou na mão, levantando-o, momento em que sentiu água fresca correr sobre si da cabeça aos pés, enquanto emanações de mirra lhe chegavam às narinas. Limpando-lhe a cara e abraçando-o, o inesperado visitante disse-lhe: - Não tenhas medo, José. Abre os teus olhos e vê quem é aquele que te fala. Levantando o olhar, José viu Jesus, ficando ainda mais aterrado pensando tratar-se dum fantasma pondo-se a recitar os mandamentos, no que foi acompanhado pelo “fantasma”.  Ora como os fantasmas fugiam ao ouvir recitar os mandamentos, José pensou tratar-se de Elias, o Rabi. – Eu não sou Elias. – Quem és tu, Senhor? – Eu sou Jesus. Disse-lhe o que parecera um fantasma, contando-lhe o que lhe tinha acontecido após a crucificação. José, ainda inseguro, pediu-lhe para lhe mostrar o lugar onde o colocara. E mostrou; ainda lá se encontravam o lençol e o sudário. E José teve a certeza de que estava na presença de Jesus, que, com todas as portas fechadas o levou para sua casa, para junto da sua cama, dizendo-lhe: - A Paz esteja contigo! Abraçando-o, Jesus disse-lhe para permanecer em casa quarenta dias e que ia juntar-se aos seus irmãos da Galileia.
José de Arimateia
   Perante o relato de José, os sacerdotes e companhia, desfaleceram e abstiveram-se de comer até à nona hora. Foi então que Nicodemo os interpelou, incitando-os a ganhar coragem com a proximidade do dia do Senhor, o sábado, o que os fez levantar e comer e beber depois de terem louvado a Deus, regressando, finalmente, cada um para sua casa.

   No dia seguinte, sábado, doutores, sacerdotes e levitas, sentindo o odioso que se tinha abatido sobre eles, reuniram-se para tentar perceber as causas, tendo sido informados por Levi, um doutor da lei, cujo mestre fora Simeão, o chefe da sinagoga, que conhecera os pais de Jesus; que estes, eram tementes a Deus, praticavam a oração, pagavam o dízimo três vezes por ano e ofereciam sacrifícios e holocaustos ao Senhor.  Simeão, disse Levi, tomando Jesus nos seus braços, declarou-se ao Mestre pronto a partir, pois reconhecera naquele menino a salvação de todos os povos e a glória do povo de Israel. Simeão abençoou Jesus e seus pais, anunciando a boa nova a Maria: - Esta criança veio para a queda e a ressurreição de muitos em Israel, e para ser um sinal de contradição. E tu próprio, uma espada te trespassará a alma, a fim de que muitos a corações sejam revelados os pensamentos.
Simeão, Jesus, Maria e José
   Sempre renitentes, mas insistindo na compreensão da verdade, os sacerdotes mandaram chamar o pai de Levi para se pronunciar quanto ao testemunho do seu filho, que ambos confirmaram. Decidiram então voltar a ouvir o testemunho aos rabi Abas, Fines e Ageu, enviando emissários à Galileia, que os encontraram e trouxeram a Jerusalém, à presença dos sacerdotes, a quem confirmaram, separadamente, o que anteriormente lhes tinham contado do que tinham visto na montanha Milkon; Jesus sentado ensinando os discípulos  tendo sido cobertos por uma nuvem que O levou para o céu, com estes prostrados de fronte contra a terra. Perante a coincidência dos três testemunhos, os sacerdotes, consideraram-nos verdadeiros  invocando a Lei de Moisés que estabelecia como suficientes para considerar verdadeira uma causa, dois ou três testemunhos coincidentes.

   Sacerdotes e levitas disseram entre si que, se a memória de Jesus durasse até Sommos - Jobel - o seu reino seria eterno e se levantaria um povo novo. De seguida, exortaram todo o Israel amaldiçoando  o que adorasse obras feitas pela mão do homem ou a criatura em vez do Criador, tendo respondido todo o povo: - Amen! Ámen! E cantaram hinos ao Senhor dizendo:

- Bendito seja o Senhor que deu o repouso ao Povo de Israel, como o tinha prometido. Não se perdeu uma única palavra de todas aquelas que ele tinha dito a Moisés, seu servo. Que o Deus Nosso Senhor esteja connosco como estava com os nossos pais. Que ele não nos conduza à nossa perda a fim de que possamos converter-lhe o nosso coração e caminhar em todos os seus caminhos, guardar os seus mandamentos e os julgamentos que ele legou aos nossos pais. E o Senhor reinará em toda a Terra nesses dias. E ele será o único Senhor e o único nome, o Senhor nosso rei! Ele mesmo nos salvará. Não há ninguém que se te assemelhe, Senhor, tu és grande, Senhor, e nós seremos curados! Salva-nos, Senhor, e nós seremos salvos! Pois somos a tua parte e a tua herança. E o Senhor não abandonará o seu povo, por causa do seu nome magnífico. Pois o Senhor começou por fazer de nós o seu povo. E voltaram a suas casas louvando a Deus, cuja glória permanece pelos séculos dos séculos, ámen!
Moisés

(Ora então que podemos concluir daqui, que os sacerdotes, levitas, anciãos, chefes da sinagoga e doutores, interpretavam e faziam cumprir as escrituras ao povo de Israel; que tomavam as suas decisões em assembleia após aturado debate, respeitando os preceitos religiosos; que tributavam a população com a aplicação do dízimo três vezes por ano e através de sacrifícios ou holocaustos; que ficaram aterrados com o abalo que a doutrina de Jesus iria provocar na ordem pública; que recorreram ao Governador romano porque podia condenar Jesus à morte por ofensa ao Imperador, enquanto as suas próprias leis não a prescreviam a quem ofendesse a Deus, e eles queriam matá-lo; que ficaram assustados e em dúvida quanto à verdadeira identidade de Jesus; que, incluindo Anás e Caifás, procuraram esclarecer essa dúvida com os meios de que dispunham e de acordo com as regras em uso; que, em face da coincidência de vários testemunhos, aceitaram Jesus como filho do Senhor e que tinha ressuscitado; que se arrependeram do sofrimento que lhe tinham causado e a José de Arimateia; que, seguindo a lei de Moisés aboliam a adoração de imagens feitas pelo homem bem como a pessoas além de Deus - os santos -; que José de Arimateia regressou a Jerusalém num ambiente semelhante ao que acontecera com Jesus Cristo; montado numa jumenta e glorificado pelo povo; que ficam por explicar as omissões da igreja Católica, aqui bem patentes).
(continua)

domingo, 2 de julho de 2017

Os evangelhos Apócrifos (V) (France Quéré, editorial Estampa)


Os Actos de Pilatos
   Pôncio Pilatos
   Mais tarde também chamados Evangelho de Nicodemo, são compostos de duas partes e terão sido escritos no século IV, como réplica a falsos escritos que o imperador Maximino Daia (311-312) tinha mandado elaborar e imposto nas escolas para vilipendiar Jesus Cristo. Com transcrições em várias línguas, apresenta Pilatos como principal testemunha da inocência, da excelência e da divindade de Jesus. Relata a conversão de Nicodemo e José de Arimateia e na segunda parte, pela pena dos filhos gémeos de Simeão, relata o caráter apocalítico da descida de Jesus aos infernos.
Memórias de nosso Senhor Jesus Cristo regidas sob Pôncio Pilatos
Prólogo
   Ananias, soldado da guarda real de ordem pretoriana e jurisconsulto anuncia-se o autor desta obra, traduzindo do hebraico para grego os escritos judaicos do tempo de Pôncio Pilatos, tendo-se convertido ao tomar conhecimento do Senhor Jesus Cristo pelas Sagradas escrituras, e recebido a honra do santo batismo. Tal sucedeu no ano 17 do imperador Flávio Teodósio e no ano 5 do reinado de Flávio Valentino.
   Vós, que lereis esta obra e dela fareis cópias, não esqueçais e rezai para que Deus tenha compaixão de mim e perdoe os pecados que cometi diante dele.
Paz àqueles que leem, àqueles que ouvem e às suas famílias, ámen.
Primeira parte
Caifás
Os sumos sacerdotes e os escribas apresentaram-se a Pilatos acusando Jesus, filho de José, o carpinteiro e de Maria, de se afirmar filho de Deus e rei e de ameaçar a lei do país violando o sábado ao curar, por meio de duvidosas manipulações, coxos, corcundas, pessoas com as mãos ressequidas, cegos, impotentes, surdos e endemoninhados, atribuindo tais façanhas a ligações a Belzebu, seu chefe, a quem todos obedeciam. Replicou Pilatos estar vedado aos espíritos impuros a expulsão de demónios.
   Pilatos chamou o mensageiro e disse-lhe: “Traz-me Jesus, mas trata-o respeitosamente.” O mensageiro saiu, e quando avistou Jesus prostrou-se diante dele. Depois, pegou na peça de tecido que segurava no seu braço, estendeu-a no chão, e disse: “Senhor, caminha sobre isso e entra, pois o governador chama-te,”
Tal enfureceu os sacerdotes que recomendaram o recurso a um simples arauto, que teria atuado sem deferências. Interrogado por Pilatos acerca de tal comportamento, o mensageiro disse ter visto em Jerusalém, para onde o enviara à procura de Alexandre, aquele homem, Jesus, sentado num pequeno jumento, sendo aclamado pelos filhos dos hebreus que seguravam ramos e estendiam as suas vestes no chão, dizendo: “Salva-nos, tu que estás nas alturas! Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!”
Um episódio com as águias dos porta-estandartes, salvou-os da morte por se ter revelado autêntica a adoração daquelas a Jesus, ao debruçarem-se sobre ele por duas vezes, atemorizando, por sua vez, Pilatos, cuja mulher, de seguida, o advertiu do sonho que tivera acerca da inocência de Jesus. Tal não demoveu os judeus, de o continuaram a invectivar provocando a perplexidade de Pilatos, que perguntou a Jesus a razão do seu silêncio, tendo este respondido: “…cada um tem o poder da sua boca, é livre de dizer o bem e o mal. Eles que vejam!”
(Ora aqui está patenteada a questão do livre-arbítrio, como prerrogativa divina do Homem.)
Determinados, os sacerdotes, liderados por Anás e Caifás, acusaram Jesus de nascimento ilegítimo, negado pelos doze apóstolos, aceite, então, por aqueles, apesar de, estes, se terem negado ao juramento por ser pecaminoso. Gorada a acusação de ilegitimidade de Jesus, foi então acusado de desregramento por feitiçaria e por ter-se “gabado” de ser filho de Deus. Interrogados por Pilatos acerca desta determinação dos eclesiastas, os Apóstolos atribuíram-na às curas aos sábados, levando Pilatos, perplexo, a atribuir à caridade de Jesus, a determinação persecutória dos sacerdotes.
Indignado, Pilatos saiu do pretório e disse-lhes: “O sol é minha testemunha, não encontro nada de que se possa acusar este homem.”
Reafirmando Jesus como criminoso, os sumos-sacerdotes, desafiados por Pilatos a julga-lo segundo as leis locais, recusaram-se a fazê-lo por lhes estar vedada a pena de morte.
(Interessante a dimensão do ódio e, ou, medo, dos eclesiastas a Jesus; a sua lei proibia a sentença de morte, revelando óbvias e surpreendentes preocupações humanitárias, mas, no caso de Jesus, abdicavam da prerrogativa do seu julgamento, para lhe infligirem a pena de morte sem pecarem!)
Perplexo e contrariado, Pilatos voltou a Jesus perguntando-lhe se era o rei dos Judeus e que tinha feito para o quererem condenar com tal veemência, respondendo este, não ser deste mundo o seu reino, evidenciando a ausência de exércitos para impedirem a sua entrega aos judeus.
“- …Tu o dizes. Eu sou rei. Eu não nasci e não vim ao mundo senão  para fazer ouvir a minha voz a todos os que são da verdade.”
- O que é a verdade?- Perguntou-lhe Pilatos.
- A verdade é do céu, respondeu Jesus. Pilatos retomou: - “E sobre a terra não há verdade?” Jesus disse a Pilatos: - “Tu vês como os senhores do poder sobre a terra julgam aqueles que dizem a verdade!”
   (Está aqui bem patente, esta incapacidade persistente, de reconhecimento da verdade quando inconveniente aos poderes do momento.)
O julgamento de Jesus
   Perante e renitência de Pilatos os Judeus acusaram-no, então, de ter declarado que podia demolir e reconstruir o Templo de Salomão - que levara 46 anos a construir - em três dias, sem que tal o demovesse. Que blasfemara contra Deus e por isso merecia a pena de morte, correntemente aplicada a quem blasfemava contra César.
   - Que farei eu de ti? Perguntou o Governador. - Faz conforme o que recebeste. Respondeu Jesus. - E que recebi eu? - Moisés e os profetas anunciaram a minha morte e a minha ressurreição.
   Que o levassem para o julgarem conforma a sua lei, disse Pilatos; que não, porque a sua lei só prescrevia a lapidação para quem ofendesse a Deus e eles queriam crucifica-lo, respondiam os Judeus; mas afinal, nem todos querem a morte de Jesus, disse Pilatos ao ver alguns deles em lágrimas; mas, sim, queremos, viemos todos em conjunto pedi-lo por se ter afirmado filho de Deus e rei. Intercedeu Nicodemos pela libertação de Jesus, imerecedor da morte e que, tal como sucedeu a Jamnés e Jambrés, servos do Faraó, acabaria por perecer se os seus prodígios não tivessem origem divina. - Mas tu és seu discípulo, por isso tomaste o seu partido, responderam os Judeus estremecendo e arreganhando-lhe os dentes, instigando-o a tomar a verdade de Jesus e partilhar da mesma sorte.
   Um Judeu testemunhou perante todos como Jesus se comovera com a sua doença, que o mantivera tolhido de dor e acamado durante trinta e oito anos, e o curara, tal como a muitos endemoninhados e outras vítimas de maleitas diversas. Que tinha sido ao sábado, disseram os Judeus a Pilatos. Outro saltou e disse que, sendo cego de nascença, recuperara a vista quando Jesus pousou a mão na sua cabeça, após ter gritado com toda a força; - Tem piedade de mim filho de David. Um ex-corcunda, um ex-leproso, uma mulher que sofrera de hemorragias doze anos, todos afirmaram ter sido curados por Jesus. Que os testemunhos de mulher não contavam, disseram os Judeus. (Curiosa, esta desvalorização da mulher consagrada nas escrituras antes de Cristo). Que era um profeta, que submetia os demónios, que tinha reerguido Lázaro morto há quatro dias, que não sabiam porque os seus doutores em leis não lhe obedeciam, dizia a multidão, fazendo estremecer Pilatos, que lhes perguntou: - Porque quereis vós derramar sangue inocente? Pediu conselho a Nicodemos e aos 12 (11) homens (Apóstolos) que tinham testemunhado a legitimidade do nascimento de Jesus, que o remeteram para o veredito popular. Inquiriu o povo Judeu lembrando-lhes a tradição de libertação de um prisioneiro, pelos Ázimos, intercedendo, implicitamente, por Jesus. - Barrabás! Bramiram eles. - Que farei eu então de Jesus, aquele a quem chamam Cristo? - Crucifica-o! Não és amigo de César se o soltares. Ele diz-se filho de Deus e rei. É então aquele rei que tu queres e não César?
Nicodemo

   - Povo sempre rebelde, vós insurgis-vos até mesmo contra os vossos benfeitores! Disse-lhes Pilatos, evidenciando a falta de autoridade moral para o criticarem pela ingratidão que tinham demonstrado a Deus, que os tinha salvo em todas as provações por que passaram desde a saída do Egito até à adoração do bezerro fundido. - Nós reconhecemos como rei, César e não Jesus! Ora os magos trouxeram-lhe presentes do Oriente, como a um soberano. Mais disseram que este Jesus era quem Herodes queria matar quando ordenou o massacre das crianças e que José salvara ao fugir para o Egito. - Sim, É este! Responderam enquanto Pilatos lavava as mãos em água, frente ao sol dizendo: - Eu estou puro do sangue deste justo! Cabe a vós decidir! - Que o seu sangue recaia sobre nós e os nossos filhos!  Bramaram os Judeus.
(Grande era o ódio e, ou, medo dos sumos sacerdotes, de Jesus que os impelia a abdicarem de aplicar a sua própria lei, por não permitir a condenação à pena de morte, razão do recurso à lei romana. De facto, o discurso de Jesus ameaçava desmantelar a estrutura eclesiástica vigente, na qual tinham papel de destaque.)
   Pilatos, deu-se, então, por vencido, informando Jesus da sentença que lhe destinara; flagelação, segundo os costumes dos piedosos imperadores, seguida de crucificação no jardim onde tinha sido preso (o Jardim das Oliveiras), em simultâneo com a crucificação dos malfeitores Dimas e Gestas.
   Despojado de suas vestes, cingido de linho e ostentando a coroa de espinhos que lhe fora imposta, Jesus foi crucificado e disse: - Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Os soldados dividiram as suas roupas entre si, deram-lhe vinho azedo misturado com fel e, tal como os sumos sacerdotes, escarneceram dele desafiando-o a salvar-se, uma vez que, como dizia o letreiro. encimando a cruz, em grego romano e hebraico, era rei dos Judeus. Gestas,  (o mau ladrão) desafiou-o a salvar-se,  e a eles, se é que era Cristo, sendo de imediato repreendido por Dimas; que temesse a Deus, e recordou-lhe a justiça da sua condenação face à injustiça da condenação de Jesus, que nenhum mal fizera. - Senhor, lembra-te de mim no teu reino. Disse Dimas. - Em verdade, em verdade te digo, de hoje em diante tu estarás comigo no paraíso. Respondeu-lhe Jesus.
Soldados dividindo as vestes de Jesus

   Vieram as trevas, entre a sexta e a nona horas, por eclipse do sol, rasgando-se ao meio o véu do templo, exclamando Jesus com voz forte: - Pai, Baddoch efkid ruel (Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito). E expirou!
(Diego Velasquez, 1632)
(continua)