Publicação em destaque

Olhando Para Dentro (notas)

Olhando Para Dentro 1930-1960 (Bruno Cardoso Reis) (Em História Política Contemporânea, Portugal 1808-2000, Maphre - nota...

Pesquisar neste blogue

sábado, 31 de março de 2018

Correio da Noite

  

Agustina e seus pais, passaram a noite de Natal de 1934 num velho vagão do comboio correio, cheio até ao tejadilho - de caixotes de passas de Alicante, e uma urna coberta com um pano encerado -, na companhia de três cães perdigueiros, um hortelão de frades - o Manuel Cunha; o maior mentiroso, o mais famoso gastador de petas lá do sítio - e uma criada de servir, a Rata - que estreava uma peineta nova. Um episódio pitoresco de que o país profundo é - ou, pelo menos, era -, fértil e que deu lugar a este hilariante conto: 

“…O comboio, na noite clara, soltava fagulhas verdes e douradas. Víamos o rasto delas através das portas que iam meio abertas. Eu tinha nesse ano umas luvas de lã de punhos altos, de alpinista, e os dedos estavam vidrados pelo frio.
   - Ah, lembra-me isto uma passagem que se deu em Argabiça – disse Miguel, na sua vozinha refilona e alegre. Eu pensei para mim: “Temos espanholada.” E a Rata interrompeu o seu piedoso discurso de Electra sobre a urna, para se arrumar comodamente entre as caixas de passas. Era uma rapariga a jeito da escultura Maya - estou a vê-la, um ar maciço, fecundo e antigo; os brincos de ouro tinham crostas de cera verde. - Os de Argabiça tinham uma fábrica de urnas - continuou Miguel  -, e eram famosos por isso. Mandavam-nas para o Brasil, a direito pelo mar dentro, atadas com sogas umas às outras. E levavam seis dias e poucas horas a lá chegar. Seguiam as correntes; não saltavam as ondas, iam a par delas. Isto poupava-lhes muitas léguas. Eu andava nas podas, que não sou de Argabiça, mas um migalho mais acima. Dois moços chegaram-se a mim e desafiaram-me: “Queres vir tu ao Pará?” - “Quero” - disse eu. Pendurei a tesoura no cinto e meti-me com eles nos caixões, que era a nossa maneira de embarcar. O mar estava lesto, e o coração do mar batia como um sino. Ouvíamos cantar as sereias, e os filhos delas corriam no fio do cachão sem se afundarem. Chegámos ao Brasil aí pela noite do Ano Bom; a praia estava cheia de velinhas que alumiavam o mar, e as pretas traziam flores e atiravam-nas à água.
   - Cala-te fardeleiro, que não te posso ouvir! – disse a Rata. Desatou com fúria o nó do cabelo e voltou a torcê-lo.
   - Eu morra se não falo verdade! – Os olhinhos amarelos do Miguel Cunha, a sua voz cantarina, o cabelo turdilho que ele já tinha, a pequena figura rabina, tudo se me pregou na memória. E o tambalear do vagão nos trilhos naquela noite de alto céu sem bruma.
   - Enredas bem os teus enredos – disse meu pai entre maravilhado e distraído.
   - Que falo certo, e isso não me pesa…..Tenho como testemunha um cafezal que podei com a minha tesoura antes de me vir embora. Ainda lá está cafezal. E no último pé botei-lhe duas letras, que foram um A e um B. Não era Ano Bom, não era nada disso. Era Adeus Brasil. Assim a luz do sol me alumie, como não foi aparença.
   - Eu fio-me – tornou a Rata, moída de ronha cega. Olha que pecas! Olha que pecas!
   Eu tive de repente medo. Quem viajava comigo naquele escuro lugar? Viam-se os pinheiros e os postes desenhados no claro da lua. Os fechos de cobre da urna tremiam levemente. Àquela hora, em casa, já a ceia tinha sido servida; e os gatos mediam a própria sombra, com elásticos passos depois dum banquete de espinhas. Não havia presépio; só um Cristo de barro dentro dum fanal, com cravos nas mãos, pintados de purpurina. Eu não recebia presentes – era demasiado pueril e até ridículo dar presentes a quem se ama. O amor não se comemora. E o Natal até era mais belo quando era obscuro e quase inesperado no decurso dos dias sem história. Perguntei lá em casa:
   - O Miguel Cunha mente muito?
   - Como uma cesta rota”
(Agustina Bessa Luís, em “A Brusca”, extrato do conto Correio da Noite)

 Peniche, 31 de Março de 2018
António J. R. Barreto

terça-feira, 27 de março de 2018

Pseudo-revoluções

   "Refira-se que o objetivo não é simplesmente destruir a ditadura em funções, mas sim instituir um sistema democrático. Uma grande estratégia que circunscreva o objetivo à mera destruição da ditadura instalada corre o sério risco de permitir o aparecimento de outro tirano."
 
(Gene Sharp em Da Ditadura à Democracia)
 
 
     
 
Chegada de Álvaro Cunhal no 25 de Abril; uma réplica da vitória bolchevique

   Pois foi exatamente o que aconteceu com o 25 de Abril em 1974; os "garbosos" capitães não tinham qualquer ideia do que fazer no day after, proporcionando a liderança posterior do processo ao único partido com capacidade para tal; o PCP. Fundado em 1921, financiado pela União Soviética, o Partido Comunista Português tinha, em 1974, uma estrutura hierárquica e operacional consolida, com trabalho subversivo profundamente disseminado nas forças armadas, quer ao nível dos oficiais subalternos, em especial os milicianos - doutrinados nas universidades pelos membros das células comunistas -, quer do oficialato superior, como veio a verificar-se posteriormente, com os casos de Vasco Gonçalves, Rosa Coutinho, Vitor Crespo e outros. Percebi, não há muito tempo, a causa da "superioridade moral" que os comunistas lusos habitualmente ostentam.  E têm razão; tiveram um papel decisivo para a génese e o sucesso do golpe militar, quer na sociedade civil quer nas Forças Armadas. Os capitães nem perceberam que estavam a fazer o célebre papel de "idiotas úteis".
 
   A guerra civil esteve por um fio. A ala democrática do MFA apoiada por um punhado de patriotas - entre os quais Ramalho Eanes e Jaime Neves e os Partidos democráticos, com destaque para o PS -, associada à hesitação de Otelo e Álvaro Cunhal, à desmobilização dos paraquedistas e de Salgueiro Maia - um democrata posteriormente, ostracizado -, e à liderança, algo surpreendente, de Costa Gomes - inviabilizou a deriva totalitária comunista, culminando nas eleições para a Assembleia Constituinte de 1975, nas quais, o Partido Socialista emergiria como grande vencedor, subalternizando, politicamente o PCP. Apesar disso o país ficou socialmente dividido até hoje, refletindo-se num ziguezaguear permanente da ação governativa com enormes custos económicos que o têm mantido, quase permanentemente, na fronteira da indigência financeira. Com o funcionalismo público a fazer o papel atribuído pelo marxismo ao proletariado, a Sociedade Civil, destituída da capacidade de escolher os seus representantes parlamentares, paradoxalmente, num regime que se pretendia garante da liberdade, da igualdade de oportunidades e da dignidade, acaba submetida a uma feroz repressão fiscal e a uma degradação crescente dos serviços públicos básicos, como a saúde, a educação e a segurança.
 
   Em quarenta e três anos de vida democrática é notória a perda de qualidade do regime, impondo-se um patriótico debate no sentido de corrigir a sua característica eminentemente governamentalista, restabelecendo a eficácia dos indispensáveis contrapesos e a efetiva representação dos cidadãos.
 
Peniche, 27 de Março de 2018
António J.. R. Barreto

 

sexta-feira, 23 de março de 2018

Os mecanismos de mudança, segundo Gene Sharp

  
 
(Tela de Salvador Dali, Metamorphosis of Narcissus 1937)
 
   As quatro maneiras de mudança características da luta não violenta preconizadas em "Da Ditadura à Democracia" são as seguintes:
 
   -  Conversão: acontece quando os "ditadores" se comovem com o sofrimento que causam aos resistentes ou quando são persuadidos racionalmente por estes. Ocorre com reduzida frequência.
 
   - Acomodação: quando se estabelece um acordo entre os oponentes mediante cedências mútuas.
 
  - Coerção Não Violenta: caracterizada pela permanente atitude de desafio e não cooperação de massas com o consequente efeito de degradação ou paralisação dos serviços públicos.
 
   - Desintegração: verifica-se quando se generaliza a desobediência dos membros das estruturas públicas, provocando a paralisação dos respetivos serviços, bem como o repúdio da população aos governantes deslegitimando os respetivos mandatos.  O desmoronamento do aparelho governativo é a consequência da conjugação destes fatores.
 
   (em Da Democracia à Ditadura) 
 


  Se atentarmos no que tem ocorrido na democracia portuguesa desde 75 verificamos que os métodos de Acomodação, Coerção Não Violenta e, até, ocasionalmente, os comportamentos característicos da Desintegração. Tal sugere que há setores da sociedade portuguesa que consideram o atual regime com características de uma ditadura, o que parece um paradoxo. 
 
Peniche, 23 de Março de 2018
 
António J. R. Barreto

Atahualpa Yupanqui - Los ejes de mi carreta

terça-feira, 20 de março de 2018

Centros de Poder Democrático (Por Gene Sharp)

   "Uma das características de uma sociedade democrática é a existência, à margem do Estado, de uma grande diversidade de grupos e instituições não governamentais de que fazem parte, por exemplo, as famílias, as organizações religiosas, as associações culturais, os clubes desportivos, as instituições económicas, os sindicatos, as associações estudantis, os partidos políticos, as comunidades rurais, as associações de bairro, as sociedades literárias e outras."
 
"....se estas instituições podem ser controladas de forma ditatorial pelo poder central ou substituídas por outras, mais controladas, também podem ser usadas para dominar os seus membros e os setores da sociedade em que atuam."
 
(Da Ditadura à Democracia, Gene Sharp)

domingo, 18 de março de 2018

Originalidades de "A Brusca"

   "- Mãe, mãe! - diziam as moças, com trejeitos duma cólera ávida, repelente, destruidora, a cólera sem finalidade das mulheres, que é apenas pretexto duma afirmação, duma quase vingativa expansão do sexo. - É uma canalhice!..."

 
   "O caso, muito abafado, passou depressa, pois o mundo gosta de resgatar a sua responsabilidade com o esquecimento. Sim, com o esquecimento que antecede sempre a redenção."
 
 
(Agustina Bessa Luís, Os Amantes Aprovados, em; A Brusca)
 
(Tela de José Malhoa; A Sesta dos Ceifeiros)
 

sábado, 17 de março de 2018

Fontes do poder político, segundo Gene Sharp

Fontes indispensáveis do poder político:  

Autoridade: a convicção generalizada entre o povo de que o regime é legítimo e é seu dever moral obedecer-lhe.

   Recursos humanos: o número e a importância dos indivíduos e grupos que obedecem, cooperam ou dão assistência aos governantes

    Competências e o conhecimento: necessários ao regime para executar tarefas específicas, asseguradas por indivíduos e grupos cooperantes.

   Fatores intangíveis: fatores psicológicos e ideológicos suscetíveis de levarem o povo a obedecer aos governantes e a auxiliá-los.

   Recursos materiais: capacidade dos dirigentes para controlar ou ter acesso à propriedade, recursos naturais, recursos financeiros, sistema económico e meios de comunicação e transporte.

   Sanções: castigos, sejam eles ameaça ou efetivamente aplicados, contra os que desobedecem ou não cooperam, com vista a garantir a submissão e cooperação necessárias à existência do regime e a cumprimento das suas políticas.

   ....a supressão da cooperação popular e institucional com os agressores e ditadores diminui e pode cortar o acesso às fontes de poder de que todos os dirigentes dependem. Sem elas, o poder dos governantes perde eficácia e, finalmente, desaparece.

.....Nicolau Maquiavel afirmava que "o príncipe que tem o povo como inimigo nunca estará em segurança; e quanto maior for a sua crueldade, mais fraco se tornará o seu regime"..  

(Em, "Da Ditadura à Democracia, de Gene Sharp, Tinta da China)

(Tela de Abel Manta)

Peniche, 16 de Março de 2018

António J.R. Barreto

domingo, 11 de março de 2018

Da ditadura à democracia


"Foram reconhecidos 200 métodos de específicos de ação não violenta, mas muitos outros existirão, certamente. Dividem-se em três grandes categorias: o protesto e a persuasão, a não cooperação e a intervenção."

(Gene Sharp, Da ditadura à democracia)

sábado, 10 de março de 2018

Da Ditadura à Democracia (Gene Sharp, Tinta da China)

  
Mahatma Ghandhi (1869 a 1948), foi o grande pioneiro da não-violência enquanto método de luta dum povo pela liberdade política, no caso, o povo indiano contra o império Britânico. As humilhações que, estoicamente, sofreu na Africa do Sul onde exercia a profissão de advogado, decidiram-no a assumir na plenitude a sua condição de indiano e encetar uma luta sem tréguas com métodos inovadores pela libertação dos indianos do jugo Britânico. Culto e educado, sem um exercido ao seu dispor, Mohandas Karamchand Gandhi, iniciou a sua cruzada, começando por difundir, sistematicamente, junto da população, a necessidade de exigir aos colonizadores, o fim da segregação e da condição de miséria e subalternidade a que eram, historicamente, sujeitos. A adoção de vestuário tradicional indiano em qualquer circunstância, a desobediência civil e o recurso a jejuns públicos, constituíam um desafio permanente ao poder imperial. A eloquência, cordialidade e dissidência que demonstrava provocavam a adesão crescente dos populares e induziam fissuras na administração colonial. O apelo à não cooperação e ao boicote comercial culminou nas guerras do sal e dos têxteis, mediante as quais, grande parte da população passou a produzir o seu próprio sal e os tecidos de uso pessoal, provocando consideráveis prejuízos na economia britânica. As grandes dissidências entre correligionários no longo processo de debate consequente, ultrapassava-as com recurso a inabaláveis jejuns, por vezes de longa e perigosa duração, tal como algumas decisões opressoras da administração. A Índia tornou-se independente em 1947 e, apesar de todos os esforços de coesão de Gandhi, acabou dividida, dando lugar ao Paquistão, de cultura muçulmana, e a uma guerra feroz entres ambas. Iniciara-se o processo de descolonização que culminaria em 1974 com a fim do Império Luso. Gandhi foi assassinado em 1948 por Nathuram Godse, um indiano dissidente. 

     Gene Sharp - 1928 a 2018 -, fundador da ONG Albert Einstein Institution, e professor de Ciências Políticas na Universidade de Massachusetts, dedicou-se ao estudo da resistência pacífica, enquanto método de oposição das populações aos regimes totalitários, aprofundando e sistematizando os métodos de luta; desafio cultural, não colaboração, desobediência civil, marchas de protesto, greves, boicote das fontes de poder, subversão das estruturas públicas, controlo dos recurso naturais, enfim, toda uma extensa panóplia de ações que descrimina exaustivamente, destacando a importância da definição da estratégia global, das estratégias setoriais, do planeamento e da disciplina.
   Este manual, com larga disseminação no mundo, - traduzido em 28 línguas -, é um instrumento de luta pela democracia à disposição das populações oprimidas tendo produzido efeitos em vários países, como na Birmânia, na Indonésia, na Sérvia e mais recentemente, em Angola, com o caso Luaty Beirão. Questiono-me quanto à eficácia deste processo em regimes tenebrosos, em que qualquer dissidência, por menor que seja, é extirpada pela raiz, como são os casos da Coreia do Norte, de Cuba da Venezuela, da Rússia e da China. Julgo que este método só funciona em regimes autoritários, com exposição e interação no concerto das nações e algum tipo de abertura interna.
   No caso português, a queda do antigo regime sucedeu após a abertura política, embora moderada, introduzida em 1968 por Marcelo Caetano, com a integração de dissidentes históricos exilados nas universidades públicas, a inclusão da Assembleia Nacional a democratas - a designada Ala Liberal constituída por Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Magalhães Mora e Miller Guerra -, e até uma proto-abertura eleitoral. Hoje parece-me claro que, à época do 25 de Abril, as forças armadas lusas estavam infiltradas ao mais alto nível por aderentes aos opositores do regime, praticando a chamada resistência passiva. Disso mesmo se queixavam, à época, as populações brancas do ultramar luso, como eu próprio testemunhei, com perplexidade.
   Na sociedade portuguesa atual identificam-se múltiplas ações sistemáticas que configuram métodos de luta não violenta, ficando-me a convicção de que há entidades, alguns partidos políticos e sindicatos, que se comportam como se o país vivesse em ditadura. Não é o caso, mas é verdade que se trata de uma “democracia burguesa”, uma espécie de ditadura para quem defende a democracia direta, caso do Bloco de Esquerda ou uma “democracia proletária”, caso do Partido Comunista. O que é facto é que as estruturas da administração pública parecem corroídas pela atitude generalizada de não colaboração, comprometendo o progresso económico do país. Se, por um lado, é necessário dotar a sociedade de instituições públicas e, sobretudo civis, de escrutínio permanente que inviabilizem a tentação do autoritarismos das novas elites, por outro é necessário impedir o desmantelamento das democracias por qualquer tipo de radicalismo iluminado disfarçado de progresso social democrático.
  Sendo a inequívoca intensão do autor de ajudar as populações a libertarem-se dos regimes totalitários a que estão submetidas, também é verdade que é extraordinariamente fácil a qualquer um, até por razões pessoais, boicotar os organismos públicos onde trabalham apesar de instituído o regime democrático. Também os ditadores podem usar o método da não violência para derrubar democracias, servindo-se da tolerância que lhes é inerente, e instituir ditaduras.
Peniche, 09 de Março de 2018
António JR Barreto