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sábado, 2 de dezembro de 2017

Belmiro de Azevedo

     


Há um genuíno sentimento de perda na sociedade portuguesa pela partida de Belmiro de Azevedo. Simboliza o moderno capitalismo; o que saiu do 25 de Abril de 74. Construiu uma obra notável sem os favores do Estado ou dos partidos que dele se servem. Um exemplo de coragem e persistência. A sua obra mais notável, no setor da distribuição, fez mais pelos portugueses que qualquer governo; aumentou-nos o poder de compra ao reduzir os preços dos bens de primeira necessidade e melhorou-nos a qualidade de vida ao tornar-nos acessíveis a tecnologia, aliviando-nos as rotinas domésticas, aprofundando e ampliando a socialização e a cultura. Não esteve só, mas fez parte do processo, tendo sido pioneiro e vanguardista, também no setor da comunicação e noutros. Um sinal de que há, na sociedade portuguesa, forças que a podem tirar da quase indigência económica. Fez, exemplarmente, a destrinça entre despesa e investimento, conceito que carece de maior valorização entre nós.

   Porém, há um lado lunar no modelo empresarial que adotou que importa ter presente. É certo que a turbulência económica e social são consequências inevitáveis do progresso tecnológico e económico mas, esta, nem sempre é virtuosa. A proliferação de grandes centros de distribuição chegou às pequenas cidades e, mesmo nestas, difunde-se pelos bairros, abalando as economias locais, condenando à insolvência os pequenos estabelecimentos comerciais e de serviços que lhes davam vida. A pequena mercearia, o talho, a peixaria, as lojas de roupas, de eletrodomésticos, de sapatos, etc., as pequenas oficinas de serviços; carpintarias, pichelarias, serralharias, construção, eletrodomésticos, etc.., vão desaparecendo, deixando as cidades e as vilas desertas. Pode argumentar-se que a ineficiência é insustentável e que deve ser banida em nome de melhor qualidade de vida futura. Pode ser, mas não estou certo de que valha a pena. À redução do custo de vida sucedeu, para muitos, o desemprego, o trabalho precário e a emigração. É que, enquanto as empresas tradicionais recorriam aos serviços locais, estabelecendo uma rede económica de baixa produtividade mas difusora do valor acrescentado criado localmente, os grandes grupos, ampliaram e verticalizaram a oferta, arrebatando todos os ganhos de todas as cadeias de valor inerentes aos seus negócios. Consta que, por cada posto de trabalho criado pelas grandes superfícies, três são destruídos. Assim, os seus armazéns são projetados, construídos, equipados e mantidos por empresas dos próprios grupos, e quando recorrem a subcontratação alavancam a razão de troca em seu benefício graças ao ascendente negocial de que dispõem minimizando as margens de lucro dos seus parceiros assim condenados aos baixos salários. Mas não é tudo. Concentrando a distribuição num semi-monopólio resultante do esvaziamento dos circuitos tradicionais, as grandes superfícies constituem o principal veículo de escoamento da produção local, cujo valor acrescentado controlam ao cêntimo reservando para si a “parte de leão”, deixando-lhes apenas o suficiente para continuarem a produzir. Isto depois de lhes terem imposto os investimentos inerentes, cobrando-lhes rendas faraónicas e imputando-lhes todos os riscos do correspondente negócio, constituindo-se em meros gestores da produção alheia! Uma versão atualizada dos “pecados” do capitalismo identificados por Carl Marx.

   Se a criação líquida de postos de trabalho é incerta, o mesmo ocorre relativamente à qualificação dos seus colaboradores. Só no topo da hierarquia a qualificação e os bons salários ocorrem; na base da pirâmide, o maior contingente de emprego criado é desqualificado, mal pago, e sujeito a condições de trabalho, por vezes, infame. A dissidência é duramente castigada. A cultura é a do “homem providencial” e da obediência. O resultado traduz-se na brutal concentração económica. Se há criação de riqueza, e há, a maior parte vai direitinha para o topo. Mil e trezentos milhões de euros! Não estou certo que todo este valor corresponda a riqueza criada e, se foi, deveria ter sido melhor distribuída pela cadeia humana subjacente.

   Neste processo, estão envolvidos os poderes públicos centrais e locais; os primeiros porque vêm neles um meio de excelência de controlo macroeconómico através da redução da inflação, os outros uma saborosa fonte de receitas para a insaciável voracidade dos seus orçamentos. Os mercados municipais, em vez de agentes de promoção das economias locais, entraram em decadência por falta de investimento público, muitas vezes comprometido com os promotores das grandes superfícies. A tentativa inicial de controlo da expansão daqueles estabelecimentos, na defesa da economia tradicional, depressa se esboroou. Saiu da agenda política. Uma economia débil, desprotegida, em mercado aberto, conduz ao endividamento progressivo e a novos constrangimentos do progresso económico transferindo para os países desenvolvidos a riqueza endógena. Um círculo vicioso difícil de contrariar.

   Belmiro de Azevedo jogou exemplarmente o jogo da economia de mercado, na distribuição, nas telecomunicações, nos laminados de madeira etc., mas não creio que tenha sido exemplar na distribuição da riqueza produzida e no respeito pela dignidade dos seus colaboradores. No melhor e no pior, foi um exemplo donde poderemos colher grandes ensinamentos sendo merecedor da minha admiração e respeito.

  António Barreto  Peniche,
  02 de Dezembro de 2017