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Olhando Para Dentro (notas)

Olhando Para Dentro 1930-1960 (Bruno Cardoso Reis) (Em História Política Contemporânea, Portugal 1808-2000, Maphre - nota...

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domingo, 20 de agosto de 2023

Dentro de Ti

 

Dentro de Ti


No teu céu só há ternura,

- é da ternura que vens -

No teu céu há estrelas,

que chegam a ti em nuvens de carinho.

Não é preciso que lhes peças que voltem,

porque, na verdade, nunca foram embora,

Para que as vejas,

para que as sintas,

basta que ergas os olhos para cima,

e que percebas que não estão longe.

Basta que prestes atenção à brisa fresca na tua testa,

que sintas aquele arrepio familiar na base da nuca,

e que não te esqueças dos teus sonhos.

Para que as vejas.

Para que te vejas.

Basta que te inspires,

no que já superaste,

na mulher em que te tornaste,

porque tudo o que precisas saber,

já está dentro de ti.


Notas para ela de Tânia Cruz Oliveira




Peniche, 20 de Agosto de 2023

António Barreto

domingo, 13 de agosto de 2023

Uma fenda na Muralha

 

Uma Fenda na Muralha

Alves Redol


Poucos romances portugueses há sobre a temática do mar e dos seus povos. Este é um deles. Desenrola-se na Nazaré onde as aspirações dos pescadores, o seu dia-a-dia, as suas tragédias, as suas glórias, os seus amores, são relatados com perspicácia e vivacidade. O respeito e medo pelo mar, a compulsão do seu enfrentamento, das peripécias de gerações, o brio garganeiro, a âncora religiosa e da mulher que, na praia, vive todas as aflições e angústias da incerteza. Incerteza pelo pão, pela vida e pelo amor.

Uma ficção neorrealista - nas fronteiras do realismo mágico dada a exuberância e sucessão de episódios marítimos espetaculares - escrita num estilo gracioso e sintaticamente irrepreensível.

Um livro fascinante que me “agarrou” desde a primeira página e cuja história poderia ter ocorrido em qualquer outra praia. Pela minha mente, inevitavelmente, foram desfilando alguns episódios ocorridos na Praia de Buarcos, minha terra natal.


“Rolam corpos na proa. Todos estão cegos pelas paredes e pelo tecto de água que os envolve, Ah! Ti Zé que estamos desgraçados! Rezam e gritam, amaldiçoam e humilham-se. Manel cai sobre o motor e agarra-o, tapa-o com o corpo, como se a rabana não bastasse. Lembra-se daquela vez que o foram buscar ao mar, acima do casco virado de um barco da xávega e quase tiveram que lhe partir os dedos para o tirar de lá e trazer para terra.

O motor não deixa de trabalhar, martela, martela sempre, e ele incita-o, encosta-lhe o peito, como se o seu coração pudesse animar o coração do barco.

“Ah motorzinho valente! Leva-nos em bem, não pares…”

O perigo maior passara. Olham-se os homens lá em cima e o arrais benze-se. Mas nos seus olhos azuis vidrados há ódio pelo mar.”


Uma Fenda na Muralha

Alves Redol



Foto de Artur Pastor

Peniche, 13 de Agosto de 2023

António Barreto

sábado, 5 de agosto de 2023

Gente da Praia

 

Gente da Praia


Depois, alguns homens desceram à praia...E mar assim tão calmo e céu assim tão aliviado minara-lhes vergonha e saudade de ganhá-lo:

- Eh, gente! vamos aparelhar!...

- Eh, Tóino! Eh, Moisés! Toca a chamar a companha!...

Em ruelas e esguelhas de caminhos, uma chusma de catraios perfurou, endemoninhada gritando o aviso de sempre:

- Zé Liró, o arrais chama, ouviste?...

- Manel da Palmira, o arrais chama!…

- Onde tá o seu filho, ti Custódia? O arrais chama!

Mulheres correram também, levando o mesmo apelo:

- Ó Júlio! Júlio! O arrais chama, ouviste?

- Maximiano, olha o arrais!...

E o chamamento repercutia de norte a sul:

- ...o arrais chama!...

- ...o arrais chama, ouviste!?

- ...o arrais chama!...

A aldeia formigou para a praia, levada pelo grito de todas as bocas. Embarcações afastavam-se de terra – oito remos a espadanar, arrais e espadilheiro encarrapitados na bica de ré. Roncos de óóó upa!, costados a forcejar meias-luas, pés na areia resvaladiça - todos punham a sua gana naquele entusiástico momento.

- Não há fome que não dê em fartura!...- disse o dono de um barco ao enxergar o seu aparelhado. - Ou trazem todo o peixe… ou o espantam para sempre!…

Recoveiros fixavam-se no areal, envolvido pelo nó das pandas. E os traços negros das sirgas submergiam-se na na verdura das águas.

Gente da praia aguardava o alar das redes. Puxavam-se cigarradas gostosas - pois aquele dia foi um dia bem vivinho. História ou peripécia logo arrancava galhofa de soltar as peles.

Amolecia o pesadelo do mau tempo.

Golfinho do Racha foi a primeira embarcação a findar lance. O Santo António do Chico Soldadinho aportou a seguir. E os alares foram simultâneos: um a sul e outro ao norte. Vinte e cinco, trinta cordas recolhidas – e logo as mangas das redes foram puxadas à finca. As redes agitavam-se em amplas e rítmicas vibrações, quando os sacos foram abertos. Os do fisco acorreram, e começou a lota com a contagem dos escrivães. Berrou-se um chui a 200 mil reis, outro a 340. Catraios procuraram os armadores, com as alvíssaras. Novas embarcações trouxeram panda. Novos alares.

A tarde alongou-se nesse afã. O pessoal de terra nem se lembrava já da bulha dos tascos. Ria-se, agora, das graçolas que um ou outro largava, pois, na vida do mar, não escasseavam motivos e graçolas… Alguns barcos ficaram no segundo lance, arrecadando cordas, bóias e redes. Encalharam meias-luas. Nos tascos mais afreguesados – Mané Choco, Quintinhas, ti Isabel Piló e outros – abateram-se dívidas nos róis. Cartas e dominós vieram para as mesas. Manducas tocou gaita de beiços. Ti Lourenço castanholas. E a malta bebeu e confraternizou.”


Calamento” de Romeu Correia



Peniche, 5 de Agosto de 2023

António Barreto