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Olhando Para Dentro 1930-1960 (Bruno Cardoso Reis) (Em História Política Contemporânea, Portugal 1808-2000, Maphre - nota...

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domingo, 25 de setembro de 2022

A Tutela das Crianças

 O Partido Socialista e as crianças

  

    O caso dos pais de Famalicão, que rejeitam a frequência dos seus filhos à disciplina de cidadania - por, o seu currículo conter matéria que consideram moralmente reprovável e de sua exclusiva competência -, alertou a população para a abusiva intromissão do estado na esfera familiar.

   Numa primeira reação, naturalmente superficial, e em geral, atribuiu-se esta ingerência ao radicalismo progressista do Secretário de Estado da Educação da época, consequência da cedência do PS às exigências do BE e PCP pelo apoio político, que lhe permitiu formar Governo apesar da derrota eleitoral que obteve.

   Tratar-se-ia pois de um mal necessário. Até porque, que saiba, nenhuma figura grada do Partido veio a público apoiar o governante. Apareceram por aí umas figuras menores a defender a posição e a lançar o estigma da irresponsabilidade sobre os pais.

 Porém, o caso é bem mais profundo, enforma a doutrina do próprio Partido Socialista e é compaginável com o socialismo puro e duro.

   Nas minhas deambulações literárias deparei-me com um “Comunicado do Partido Socialista sobre a Mulher Portuguesa”, publicado no jornal República em 24 de Maio de 1974, que reza assim:

“Foi constituída no Partido Socialista uma Comissão da Promoção da Mulher em Portugal. Propondo-se estudar profundamente a situação da mulher em Portugal e encontrar resposta para os problemas que lhe dizem respeito, a nova Comissão do Partido Socialista adota como base da sua atuação as seguintes reivindicações:

1.       Salário igual para trabalho igual, com igual possibilidade de acesso a todas as profissões.

2.       Democratização da família com imediata abolição do poder paternal, substituído por responsabilidade dividida entre os dois conjugues.

3.       Abolição da Concordata.

4.       Leis do divórcio facilitadas, e abolição da discriminação entre o homem e a mulher em face dessas leis.

5.       Aborto legalizado, não como método de planeamento familiar, mas como primeira fase para disseminação de métodos contracetivos.

6.       As crianças devem ser responsabilidade de toda a sociedade e não só da família.

7.       Creche nos locais de trabalho, em freguesias e nos meios rurais.

8.       Assistência à maternidade aumentando o tempo de ausência justificada nos locais de trabalho.

9.       Direito à reforma para a mulher que não exerce qualquer profissão remunerada, trabalhando apenas em casa.

10.   Desaparecimento da discriminação em relação à mãe solteira.

   “Toda a Sociedade” em termos práticos é o Estado. E o Estado é o Partido que o ocupa, neste caso, o PS, que entende ter o dever de, em nome de “toda a Sociedade”, e ao arrepio dos preceitos constitucionais, educar moralmente as crianças de acordo com as suas prioridades doutrinárias. Formatar o futuro eleitor construindo, desde a base, o seu “homem novo” é efetiva motivação profunda do Governo Socialista e não circunstancial. A prova disso mesmo reside na promoção a Ministro do Secretário de Estado envolvido neste caso.



Peniche, 25 de Setembro de 2022

António Barreto

sábado, 17 de setembro de 2022

Um Pouco de História (X)

 

                                                               A República Romana


-Alea Jacta est! Desfeito o Triunvirato - Marco Crasso suicidara-se em Carra e tinham-se extinto os laços familiares entre César e Pompeu -, a guerra civil era inevitável. César, o jovem estroina que tinha uma ideia para a República, distinguira-se brilhantemente em Espanha e na Gália e ameaçava o poder de Pompeu, senhor de Roma. Num turbilhão de sentimentos César, com Quartel-General em Ravena, decidiu atravessar o pequeno rio Rubicão com as suas nove legiões, e ao fazê-lo, sabia que não haveria retrocesso; os dados estavam lançados.

   A entrada em Arímino surpreendeu os habitantes; os soldados entraram desarmados na cidade e o saque fora interdito. César, magnânimo, sorridente, incorporou os soldados prisioneiros e deixou os oficiais inimigos escolherem o seu destino. Enquanto Pompeu tinha declarado que quem não fosse por ele era contra ele, César fez saber que quem não fosse contra ele era por ele. Desta forma sagaz tranquilizava os cidadãos mostrando-se disponível para acolher a todos.

   Por César estava a Itália superior, os transpadanos a quem atribuíra o foro romano, e a plebe da capital. Por Pompeu, o homem sério, o homem da ordem, rei na metrópole que beneficiava dos recursos da República, estava todo o centro e sul de Itália, bem como a classe média e senadores, receosa do regresso aos tempos de Mário, Sila e Cina; dispunha de dez legiões, duas das quais, de transpadanos, cedidas anteriormente por César, ameaçavam a homogeneidade das tropas.

   Optou César por marchar sobre Lucéria, onde acampavam as tropas de Pompeu, em vez de ocupar Roma evacuada. Abertas negociações de paz exigiu o desarmamento de Itália e o regresso de Pompeu ao governo da Espanha. Pela sua parte entregaria a Gália à ordem do Senado, licenciaria o exército e candidatar-se-ia ao consulado. César era sincero, preferia fazer a revolução a partir do Senado do que através da guerra. Rejeitaram os opositores exigindo que saísse de Itália. Gorou-se assim a última possibilidade de paz.   

   Perante o avanço dos quarenta mil homens de César pela estrada Popólia, decididos, varrendo tudo pelo caminho, o timorato Pompeu abandonou Itália com os seus vinte e cinco mil homens, a caminho da Macedónia, onde pretendia reorganizar as suas forças e os seus apoiantes; a fina flor de Roma, aristocracia, alta burguesia, doutrinários - Catão e Favónio - toda a sociedade, incluindo o exímio orador Cícero, algo contrafeito.

   A República continuava a partir da Grécia. Apesar das marchas forçadas, César não chegara a tempo de o impedir e não dispunha de um único navio.

   Dois meses bastaram para César dominar toda a Itália sem derramar uma gota de sangue. Porem, não faltando tropas, necessitava de uma frota para garantir o abastecimento de alimentos à península. Os fartos tributos das províncias e a demagogia política conduziram à abolição de impostos, à distribuição dos bens nacionais e ao abandono das terras. A dependência alimentar do exterior era total, bem como o financiamento público. Pompeu contava vergar César pela fome, cortando-lhe os abastecimentos por mar.

   Pairava no espírito de todos outra orgia de sangue como a de Cina. A devassa dos capitães cesaristas fazia temer o pior; o saqueamento de Roma pelos gauleses. César porém revelou um comportamento oposto conquistando a simpatia da maioria pacífica da população; atendia todas as reclamações, era justo e bom, não confiscava bens e restituiu aos respetivos donos os que encontrara no acampamento de Brundísio. Para gerir a despesa corrente pedia emprestado aos amigos. Deste modo, os senadores que pensavam emigrar acabaram por desistir e aderir ao projeto de César.

   Tendo entrado em Roma em 48 a.C., falhando a investidura pelo Senado - sem a eloquência de Cícero não conseguiu demover a maioria -, César investiu-se a si próprio -gesto repetido por Napoleão Bonaparte em 1804. Entregou a prefeitura a Marco Emílio Lépido, distribuiu os governos das províncias e preparou a continuação da guerra.

   Sem dinheiro, perante a omissão do Senado, dirigiu-se com um grupo de soldados ao Templo de Saturno - onde se guardava o tesouro público - e arrombou a porta a machado. Perante a oposição do Tribuno Metelo, fuzilando-o com o olhar disse-lhe César: - E repara que me é mais fácil matar-te que ameaçar-te. Se dúvidas houvesse, foram dissipadas naquele momento; Roma tinha novo dono.

(Continua)

Créditos: História da República Romana - Oliveira Martins


De Corfínio a Brundísio - trajeto das forças de Júlio César na II Guerra Civil Romana

Peniche, 17 de Setembro de 2022

António Barreto

domingo, 11 de setembro de 2022

Um Pouco de História (IX)

                                                           

                                                              A República Romana

 

      O sétimo e último período da República Romana é o do cesarismo, dura cerca de 30 anos (de 59 a. C a 29 a. C) e faz a transição para a Monarquia Imperial. As sucessivas revoluções sociais dos períodos precedentes - de Cina e de Sila - deixaram a sociedade romana ávida de segurança e estabilidade, pronta para acolher quem mostrasse capacidade de impor a lei e a ordem. César foi esse homem.

   César, o jovem, culto, elegante, alto, de olhos negros, calvo, efeminado, “o homem de todas as mulheres e marido de todos os homens”, o devasso endividado até “à ponta dos cabelos”, tinha uma ideia para a República em dissolução. Mais que o exercício do poder pessoal César quis unir todo o império e refundar a República. Ao atribuir o foro romano a todos os transpadanos - súbditos residentes além do rio pó - e com a conquista das Gálias, César iniciou um processo que culminou no ano de 212 a. C. quando Caracala atribuiu o foro romano a todos os súbditos do império.

   Enriqueceu em Espanha, onde foi cônsul, graças aos tributos e confiscos, desendividando-se e iniciando a habitual estratégia de corrupção de senadores e figuras públicas, seduzindo o povo com festas opíparas, pagando dívidas alheias e emprestando dinheiro sem juros. Com o financiamento da República, César foi construindo as legiões de que necessitava para tomar o poder em Roma, e, com elas, adquiriu os meios para reconfigurar o senado com aliados e correligionários.

   Membro do primeiro Triunvirato de que faziam parte o sogro, Pompeu, e Marco Crasso, coube-lhe o governo das Gálias, tendo ficado Pompeu com o da Itália e Marco Crasso com o do Oriente.

   Contra as espectativas gerais, em especial de Pompeu que o considerava incapaz de qualquer rasgo de bravura, o jovem estroina ganhava batalhas sobre batalhas. Geralmente em inferioridade numérica conseguiu inverter a sorte da batalha sempre que a derrota parecia eminente, com ideias geniais. Venceu gauleses, bretões, belgas e germanos, pacificando toda a Gália em tempo recorde. Ciente da importância da propaganda, de tudo fazia relatórios romanceados que enviava para Roma, onde eram profusamente difundidos, construindo perante os romanos a ideia de herói da República.

    Após a morte do triúnviro Marco Crasso, que se suicidou, na sequência da derrota de Carra - Mesopotâmia - onde a sua legião foi chacinada pelos partos, liderados por Surena, e seu filho Públio Crasso morto, a rutura entre César e Pompeu era inevitável.

   Desfeitos os elos familiares por morte de Júlia, filha de César e mulher de Pompeu, e do filho destes, esfriaram as relações entre ambos. Fazendo as legiões de Itália jurar-lhe fidelidade, Pompeu afirmou-se como ditador, cônsul único e absoluto senhor do Senado. Faltou-lhe porém a coragem de demitir César do comando da Gália. Tal revelar-se-lhe ia fatal.

   O partido conservador, reunindo nobres, cavaleiros, catonianos (fiéis de Catão) e oligarcas, reuniu-se em torno de Pompeu apesar de não confiar nele. César tinha do seu lado os democratas radicais, os transpadanos, que fizera cidadãos de Roma, e as suas legiões; sobre as ruinas da inconvertível república iria erguer o principado democrático e socialista.

      César, congeminando neutralizar Pompeu com honrarias logo que assumisse o Consulado, decidiu-se pela guerra ao perceber que os catonianos tinham um plano para o afastar; acusá-lo-iam no interregno de funções, tornando-o inelegível ao consulado - em exercício de funções os magistrados eram inimputáveis. Tão exímio na intriga política como genial na guerra, César conduziu o Senado a tomar decisões que levaram Pompeu a colocar-se fora da lei e sair de Roma para se colocar à frente do seu exército, numa implícita declaração de guerra.

   O futuro tirano sabia que tinha de agir com rapidez; Pompeu tinha meios para reunir um exército triplo do seu. Com um ultimato, César dividiu o Senado em catonianos, fieis a Pompeu, e cesaristas, fieis a César. Ravena, situada na Cisalpina, província sob sua jurisdição, foi o seu quartel-general. Aqui se juntaram os tribunos populares que lhe eram fieis e as suas legiões, prontas a marchar sobre Roma. Paradoxalmente, iria destruir a constituição…cumprindo a lei! É o jesuitismo na política.

   “ O cesarismo que perverte a noção clara das coisas, que torce a justiça, que corrompe a moral, que esmaga com a Razão-de-Estado as constituições e as leis, começa por ser a vitória da intriga sobre a franqueza para depois se tornar na vitória da força sobre o direito – vitória todavia inevitável quando as sociedades chegam ao ponto a que chegara a romana em que moral, justiça, direito, constituição, leis, são para o comum da gente ficções apenas e só realidades para a minoria mínima dos retrógrados visionários à maneira de Catão.” (Oliveira Martins)

  Reunindo em Ravena a sua 13ª legião, César dirigiu-se aos soldados com tal retórica que os convenceu, não só a aderir entusiasticamente à sua causa, mas a fazê-lo gratuitamente e até a financiar a campanha, num modelo em que os Centuriões mais ricos pagavam os encargos dos outros. Confiantes no farto saque sobre a cidade, não suspeitavam sequer que tal seria interdito pelo Procônsul bem como violentar as populações das cidades tomadas.

   Num turbilhão de sentimentos e dúvidas, César decidiu-se a passar o pequeno rio Rubicão com as suas tropas exclamando: “- Alea Jacta est” (os dados estão lançados).

     (Continua)

 

                                                              Cneu Pompeu Magno

    Peniche, 11 de Setembro de 2011

    António Barreto  

sábado, 3 de setembro de 2022

                    

                                                       Memórias de Bordo

 

   Naquela manhã notei algo diferente;...era a luz. Conhecia aquela luz. Dirigi-me à vigia, que dava para a proa, e afastei a cortina de tecido grosso, verde e poroso.

   Num instante vi-me nos campos da Várzea repletos de erva fresca, dum verde quase translúcido gotejando o orvalho da aurora, salpicados do amarelo claro das “mijonas”. As águas cristalinas do ribeiro rumorejando suavemente, saltitavam de pedra em pedra entre pequenos chorões onde pintassilgos e piscos chilreavam alegremente. O canto dos piscos e o seu exuberante peito vermelho, por si só, valiam a expedição.

   Naquela manhã de primavera não resistira ao apelo do campo, a todo aquele verde infinito, ciente das consequências de ter faltado à escola; a professora Matilde iria zangar-se e "brindar-me com umas reguadas, e os meus pais não me perdoariam; amar a natureza não seria desculpa suficiente.

   Não me enganei; a luminosidade suave, difusa, da manhã, definia os azuis matizados do céu e do mar. Tranquilamente o navio deslizava rumo ao infinito sob o surdo rumor sincopado e distante da máquina. No amplo convés cinzento avistavam-se os mastros e as escotilhas dos porões e da “casa das bombas” as quais, uns bons vinte metros abaixo do convés, permitiam gerir a estabilidade transversal do navio, que me cabia manobrar.

   Acabara o quarto das oito, para mim o mais difícil. Sentia-me bem, podia descansar um pouco mais tarde. Tomei banho, mudei de roupa e fui dar uma passeata ao tombadilho superior. Debrucei-me sobre o varandim de vante observando fascinado aquela imensidão luminosa e tranquila, sentindo-me grato por fazer parte dela.

   Saíramos de Luanda no dia anterior rumo a Lisboa. Foramos recolher os haveres dos nossos compatriotas escorraçados pela guerra civil. Espalhados no cais, os contentores. Ouviramos tiros na cidade. No chão da avenida, que tantas vezes percorrera a pé até à Praia da Barracuda para umas braçadas na água morna, avistaramos alguns vultos imóveis. Lembrara-me do pedido que o primo Totta me fizera, mas não me atrevera a sair do navio; o tempo era pouco, o risco grande e não tinha como ir-lhe buscar as mobílias a casa.

  Soube depois que a FNLA entrara na cidade em guerra aberta com os grupos rivais.

   Matutava nisto quando ouvi passos:

   - Bom dia, Barreto; Vamos dar a volta, disse o 2º Piloto.

   - Bom dia; dar a volta? Retorqui, supondo que iríamos fazer algum exercício de segurança.

   - Sim, o Comandante recebeu uma mensagem do Presidente da República a pedir para irmos ao Lobito buscar as pessoas que estão acantonadas no cais, encurraladas pelos guerrilheiros; há guerra na cidade.

   Após uns segundos a digerir aquilo, respondi:

   - Nesse caso vamos fazer, com urgência, uma reunião de oficiais para delinearmos um plano de apoio às pessoas e propô-lo ao Comandante; ainda são uns quatorze dias de viagem; há-de haver gente com problemas, temos que os ajudar, sobretudo mulheres e crianças.

   Era o tempo dos delegados sindicais; cada categoria profissional elegia um delegado, constituindo-se uma comissão que debatia os assuntos internos, cujas conclusões, sendo caso disso, eram apresentadas ao Comandante. Eu era o delegado dos Oficiais de Máquinas e Coordenador da Comissão eleito pelos restantes delegados.

   Reunimos ainda nessa manhã a oficialidade subalterna; avaliámos o que poderíamos fazer e, eu e o 2º Piloto - delegado dos Oficiais Náuticos -, incumbidos pela comissão de delegados, propusemos ao Comandante uma reunião geral de tripulação para convidar todos a aderirem ao nosso plano, que consistia em disponibilizar os nossos camarotes às senhoras com filhos pequenos, ou pessoas doentes, prescindir das nossas refeições ou restringi-las  ao mínimo - tipo um prato de sopa por refeição, ou uma sandes - libertando mantimentos para os mais carenciados, manter a enfermaria de serviço aberta em permanência - tínhamos um enfermeiro a bordo e o 3º Piloto, estudante de medicina, tinha experiência de banco -, e pedir-lhe para canalizar aos conterrâneos resgatados todos os meios disponíveis em matéria de mantas e alimentos, reservando o leite exclusivamente para as crianças. Água não faltaria; tínhamos os tanques cheios e o navio fabricava-a com abundância.

   O Comandante Câmara, homem de elevada estatura, barbudo, um tanto ríspido mas, ao-fim-e-ao-cabo, boa pessoa, surpreendido, alegando que o navio não dispunha de mantimentos para tanta gente, perante a nossa insistência e disponibilidade, autorizou a reunião.

   Não havia tempo a perder, marcámo-la para a noite do mesmo dia, aí pelas 2100 horas, na vasta sala de convívio do navio. Fizemos correr palavra e, à hora aprazada, lá estávamos, os delegados, aguardando a chegada dos restantes tripulantes enquanto o navio prosseguia a sua marcha já rumo ao Lobito.

   Foram chegando os restantes camaradas, e, a certa altura, ouvimos protestos em voz alta, discordando da ida ao Lobito alegando o risco de afundamento do navio.

   Sentimos o perigo duma reviravolta. Naquele contexto, em que percebíamos que afundar um navio mercante desarmado era possível a qualquer operacional munido de um lança roquetes, bazuca ou até com uma simples granada defensiva, o medo poderia propagar-se, qual rastilho, gerando o pânico e conduzir a um resultado oposto ao que pretendíamos, ou mesmo a um motim.

   Não havia tempo para avisar o Comandante. Decididos a “matar” a dissidência à nascença, iniciámos a reunião de imediato com quem estava, abrindo os trabalhos com a votação da ida ou não ao Lobito. Declarei logo que me demitiria caso a decisão fosse pelo regresso a Lisboa, esperançado que tal não viessa a ocorrer. Surtiu efeito;  para nosso alívio a esmagadora maioria dos tripulantes votou a favor do resgate.

   Senti algo difícil de descrever, foi um pequeno gesto, é certo, mas, naquele navio, quase todos, indiferentes ao eventual perigo, decidimos socorrer os nossos conterrâneos em desespero.  O desafio era o de chegarmos antes de serem chacinados. Invadiu.-me um suave enaltecimento e algum orgulho; afinal, naquele navio, eramos uma comunidade solidária, onde o espírito de missão, que me foi transmitido logo que dei os primeiros passos a bordo, não morrera.

   Quando o Comandante chegou tudo estava consumado. Alertado pelo imediato - de alcunha “o Mãozinhas” -, manifestou a sua indignação pela alteração do motivo da reunião, sentindo-se traído. Aceitou porém, a justificação que, perante todos, lhe apresentei de imediato em nome da Comissão de Delegados.

   Chegámos ao Lobito noite dentro, talvez meia-noite, duas da manhã. A multidão esperava-nos no cais, em pânico. O embarque decorreu sem incidentes e o navio zarpou, sem demora, rumo a Lisboa.

   Cumprimos o plano estabelecido ao qual aderiu a maior parte da tripulação incluindo Comandante, Imediato, Chefe de Máquinas e 1º Maquinista. Nós, oficiais subalternos, dormíamos no chão do escritório do convés -andei com o corpo dorido uma ou duas semans mais -, revezávamo-nos no serviço de enfermaria e, não nos tendo faltado nada de essencial, alimentávamo-nos frugalmente.

   Dávamos o apoio possível a um ou outro caso mais delicado, pessoas doentes ou crianças com fome, mas, que me recorde, não houve qualquer situação grave além do desconforto resultante da precariedade das acomodações nos porões.

  Chegámos a Lisboa sem incidentes de maior, com o sentimento, discreto mas indelével do dever cumprido.

   Lamento não me recordar dos nomes dos restantes colegas, apesar de ter na memória a imagem de muitos deles.

   Hoje, gostaria de os reencontrar, dar-lhes um grande abraço e recordar esses tempos.

   O navio era o H. Capelo, o maior navio frigorífico da nossa frota da época.

H.CAPELO

    Peniche, 03 de Setembro de 2022

   António Barreto

Um Pouco de História (VIII)

 

                                 As mulheres na República Romana

 

  “O traço mais grave e mais geral da vida elegante dos romanos do fim da república é a liberdade das mulheres, que são como os homens; Têm as mesmas ocupações, os mesmos negócios. Casam-se e descasam-se com frequência. Passam de mão em mão: Lúculo casou com Clódia; depois com Servília, irmã de Catão, mãe de Bruto, amente querida de César; com Servília de quem se dizia faltar-lhe só um dos vícios de Clódia – o ter sido amante dos irmãos. O próprio Catão divorcia-se a pedido de um amigo, e quando o amigo morre volta a casar com a mulher de quem se separara. O celibato ia-se tornando regra e o malthusianismo no matrimónio era, como é hoje, a lei de toda a gente rica. Emancipadas, as mulheres intrigam, conspiram; nos seus salões dão o tom à política e fazem dos seus amantes instrumentos. César tê-las ia como sócias – César que se deitou em todos os leitos de Roma. Terência governa Ciro, Fúlvia Marco António. No Verão, as praias eram a época privilegiada do reinado feminino: em Abril suspendiam-se as sessões do Senado e começavam os passeios, as pescas, os piqueniques, onde as intrigas de amor se entrelaçavam com as políticas, e as leoas romanas traziam pelo beiço os janotas efeminados em cujas mãos estavam os destinos da república. Livres, as mulheres mostravam uma cobiça ainda superior à dos homens, porque a mulher, mais fina, mais artista, era requintada em tudo. Era célebre Afrânia, esposa do senador Licínio Búcio, pela sua paixão pelas demandas: ela em pessoa ia advogar as causas perante o pretor, atroando o Foro com a sua eloquência histérica. Tinha passado em moda dizer que uma mulher atrevida era uma afrânia.

   Também só os casos excessivos eram capazes de impressionar o romano blasé. As dançarinas, as atrizes, as cantoras, as citarinas e toda a espécie de cortesãs mais ou menos artistas tinham-se tornado o enlevo das senhoras da boa sociedade, que lhes copiavam as modas imitando-lhes os costumes. Précia foi uma espécie de Sara Bernhardt: foi amante de Betego e em seu nome governou a república. Os escândalos repetiam-se diariamente e constituíam o melhor das conversas. Só um caso excepcional, como foi o de Clódio em casa de César, já pontífice, era capaz de dar brado.”

Agripina Maior 14 a.C

História da República Romana

Oliveira Martins

Peniche, 03 de Setembro de 2022

António Barreto