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Olhando Para Dentro (notas)

Olhando Para Dentro 1930-1960 (Bruno Cardoso Reis) (Em História Política Contemporânea, Portugal 1808-2000, Maphre - nota...

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sábado, 3 de setembro de 2022

                    

                                                       Memórias de Bordo

 

   Naquela manhã notei algo diferente;...era a luz. Conhecia aquela luz. Dirigi-me à vigia, que dava para a proa, e afastei a cortina de tecido grosso, verde e poroso.

   Num instante vi-me nos campos da Várzea repletos de erva fresca, dum verde quase translúcido gotejando o orvalho da aurora, salpicados do amarelo claro das “mijonas”. As águas cristalinas do ribeiro rumorejando suavemente, saltitavam de pedra em pedra entre pequenos chorões onde pintassilgos e piscos chilreavam alegremente. O canto dos piscos e o seu exuberante peito vermelho, por si só, valiam a expedição.

   Naquela manhã de primavera não resistira ao apelo do campo, a todo aquele verde infinito, ciente das consequências de ter faltado à escola; a professora Matilde iria zangar-se e "brindar-me com umas reguadas, e os meus pais não me perdoariam; amar a natureza não seria desculpa suficiente.

   Não me enganei; a luminosidade suave, difusa, da manhã, definia os azuis matizados do céu e do mar. Tranquilamente o navio deslizava rumo ao infinito sob o surdo rumor sincopado e distante da máquina. No amplo convés cinzento avistavam-se os mastros e as escotilhas dos porões e da “casa das bombas” as quais, uns bons vinte metros abaixo do convés, permitiam gerir a estabilidade transversal do navio, que me cabia manobrar.

   Acabara o quarto das oito, para mim o mais difícil. Sentia-me bem, podia descansar um pouco mais tarde. Tomei banho, mudei de roupa e fui dar uma passeata ao tombadilho superior. Debrucei-me sobre o varandim de vante observando fascinado aquela imensidão luminosa e tranquila, sentindo-me grato por fazer parte dela.

   Saíramos de Luanda no dia anterior rumo a Lisboa. Foramos recolher os haveres dos nossos compatriotas escorraçados pela guerra civil. Espalhados no cais, os contentores. Ouviramos tiros na cidade. No chão da avenida, que tantas vezes percorrera a pé até à Praia da Barracuda para umas braçadas na água morna, avistaramos alguns vultos imóveis. Lembrara-me do pedido que o primo Totta me fizera, mas não me atrevera a sair do navio; o tempo era pouco, o risco grande e não tinha como ir-lhe buscar as mobílias a casa.

  Soube depois que a FNLA entrara na cidade em guerra aberta com os grupos rivais.

   Matutava nisto quando ouvi passos:

   - Bom dia, Barreto; Vamos dar a volta, disse o 2º Piloto.

   - Bom dia; dar a volta? Retorqui, supondo que iríamos fazer algum exercício de segurança.

   - Sim, o Comandante recebeu uma mensagem do Presidente da República a pedir para irmos ao Lobito buscar as pessoas que estão acantonadas no cais, encurraladas pelos guerrilheiros; há guerra na cidade.

   Após uns segundos a digerir aquilo, respondi:

   - Nesse caso vamos fazer, com urgência, uma reunião de oficiais para delinearmos um plano de apoio às pessoas e propô-lo ao Comandante; ainda são uns quatorze dias de viagem; há-de haver gente com problemas, temos que os ajudar, sobretudo mulheres e crianças.

   Era o tempo dos delegados sindicais; cada categoria profissional elegia um delegado, constituindo-se uma comissão que debatia os assuntos internos, cujas conclusões, sendo caso disso, eram apresentadas ao Comandante. Eu era o delegado dos Oficiais de Máquinas e Coordenador da Comissão eleito pelos restantes delegados.

   Reunimos ainda nessa manhã a oficialidade subalterna; avaliámos o que poderíamos fazer e, eu e o 2º Piloto - delegado dos Oficiais Náuticos -, incumbidos pela comissão de delegados, propusemos ao Comandante uma reunião geral de tripulação para convidar todos a aderirem ao nosso plano, que consistia em disponibilizar os nossos camarotes às senhoras com filhos pequenos, ou pessoas doentes, prescindir das nossas refeições ou restringi-las  ao mínimo - tipo um prato de sopa por refeição, ou uma sandes - libertando mantimentos para os mais carenciados, manter a enfermaria de serviço aberta em permanência - tínhamos um enfermeiro a bordo e o 3º Piloto, estudante de medicina, tinha experiência de banco -, e pedir-lhe para canalizar aos conterrâneos resgatados todos os meios disponíveis em matéria de mantas e alimentos, reservando o leite exclusivamente para as crianças. Água não faltaria; tínhamos os tanques cheios e o navio fabricava-a com abundância.

   O Comandante Câmara, homem de elevada estatura, barbudo, um tanto ríspido mas, ao-fim-e-ao-cabo, boa pessoa, surpreendido, alegando que o navio não dispunha de mantimentos para tanta gente, perante a nossa insistência e disponibilidade, autorizou a reunião.

   Não havia tempo a perder, marcámo-la para a noite do mesmo dia, aí pelas 2100 horas, na vasta sala de convívio do navio. Fizemos correr palavra e, à hora aprazada, lá estávamos, os delegados, aguardando a chegada dos restantes tripulantes enquanto o navio prosseguia a sua marcha já rumo ao Lobito.

   Foram chegando os restantes camaradas, e, a certa altura, ouvimos protestos em voz alta, discordando da ida ao Lobito alegando o risco de afundamento do navio.

   Sentimos o perigo duma reviravolta. Naquele contexto, em que percebíamos que afundar um navio mercante desarmado era possível a qualquer operacional munido de um lança roquetes, bazuca ou até com uma simples granada defensiva, o medo poderia propagar-se, qual rastilho, gerando o pânico e conduzir a um resultado oposto ao que pretendíamos, ou mesmo a um motim.

   Não havia tempo para avisar o Comandante. Decididos a “matar” a dissidência à nascença, iniciámos a reunião de imediato com quem estava, abrindo os trabalhos com a votação da ida ou não ao Lobito. Declarei logo que me demitiria caso a decisão fosse pelo regresso a Lisboa, esperançado que tal não viessa a ocorrer. Surtiu efeito;  para nosso alívio a esmagadora maioria dos tripulantes votou a favor do resgate.

   Senti algo difícil de descrever, foi um pequeno gesto, é certo, mas, naquele navio, quase todos, indiferentes ao eventual perigo, decidimos socorrer os nossos conterrâneos em desespero.  O desafio era o de chegarmos antes de serem chacinados. Invadiu.-me um suave enaltecimento e algum orgulho; afinal, naquele navio, eramos uma comunidade solidária, onde o espírito de missão, que me foi transmitido logo que dei os primeiros passos a bordo, não morrera.

   Quando o Comandante chegou tudo estava consumado. Alertado pelo imediato - de alcunha “o Mãozinhas” -, manifestou a sua indignação pela alteração do motivo da reunião, sentindo-se traído. Aceitou porém, a justificação que, perante todos, lhe apresentei de imediato em nome da Comissão de Delegados.

   Chegámos ao Lobito noite dentro, talvez meia-noite, duas da manhã. A multidão esperava-nos no cais, em pânico. O embarque decorreu sem incidentes e o navio zarpou, sem demora, rumo a Lisboa.

   Cumprimos o plano estabelecido ao qual aderiu a maior parte da tripulação incluindo Comandante, Imediato, Chefe de Máquinas e 1º Maquinista. Nós, oficiais subalternos, dormíamos no chão do escritório do convés -andei com o corpo dorido uma ou duas semans mais -, revezávamo-nos no serviço de enfermaria e, não nos tendo faltado nada de essencial, alimentávamo-nos frugalmente.

   Dávamos o apoio possível a um ou outro caso mais delicado, pessoas doentes ou crianças com fome, mas, que me recorde, não houve qualquer situação grave além do desconforto resultante da precariedade das acomodações nos porões.

  Chegámos a Lisboa sem incidentes de maior, com o sentimento, discreto mas indelével do dever cumprido.

   Lamento não me recordar dos nomes dos restantes colegas, apesar de ter na memória a imagem de muitos deles.

   Hoje, gostaria de os reencontrar, dar-lhes um grande abraço e recordar esses tempos.

   O navio era o H. Capelo, o maior navio frigorífico da nossa frota da época.

H.CAPELO

    Peniche, 03 de Setembro de 2022

   António Barreto

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