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sábado, 31 de março de 2018

Correio da Noite

  

Agustina e seus pais, passaram a noite de Natal de 1934 num velho vagão do comboio correio, cheio até ao tejadilho - de caixotes de passas de Alicante, e uma urna coberta com um pano encerado -, na companhia de três cães perdigueiros, um hortelão de frades - o Manuel Cunha; o maior mentiroso, o mais famoso gastador de petas lá do sítio - e uma criada de servir, a Rata - que estreava uma peineta nova. Um episódio pitoresco de que o país profundo é - ou, pelo menos, era -, fértil e que deu lugar a este hilariante conto: 

“…O comboio, na noite clara, soltava fagulhas verdes e douradas. Víamos o rasto delas através das portas que iam meio abertas. Eu tinha nesse ano umas luvas de lã de punhos altos, de alpinista, e os dedos estavam vidrados pelo frio.
   - Ah, lembra-me isto uma passagem que se deu em Argabiça – disse Miguel, na sua vozinha refilona e alegre. Eu pensei para mim: “Temos espanholada.” E a Rata interrompeu o seu piedoso discurso de Electra sobre a urna, para se arrumar comodamente entre as caixas de passas. Era uma rapariga a jeito da escultura Maya - estou a vê-la, um ar maciço, fecundo e antigo; os brincos de ouro tinham crostas de cera verde. - Os de Argabiça tinham uma fábrica de urnas - continuou Miguel  -, e eram famosos por isso. Mandavam-nas para o Brasil, a direito pelo mar dentro, atadas com sogas umas às outras. E levavam seis dias e poucas horas a lá chegar. Seguiam as correntes; não saltavam as ondas, iam a par delas. Isto poupava-lhes muitas léguas. Eu andava nas podas, que não sou de Argabiça, mas um migalho mais acima. Dois moços chegaram-se a mim e desafiaram-me: “Queres vir tu ao Pará?” - “Quero” - disse eu. Pendurei a tesoura no cinto e meti-me com eles nos caixões, que era a nossa maneira de embarcar. O mar estava lesto, e o coração do mar batia como um sino. Ouvíamos cantar as sereias, e os filhos delas corriam no fio do cachão sem se afundarem. Chegámos ao Brasil aí pela noite do Ano Bom; a praia estava cheia de velinhas que alumiavam o mar, e as pretas traziam flores e atiravam-nas à água.
   - Cala-te fardeleiro, que não te posso ouvir! – disse a Rata. Desatou com fúria o nó do cabelo e voltou a torcê-lo.
   - Eu morra se não falo verdade! – Os olhinhos amarelos do Miguel Cunha, a sua voz cantarina, o cabelo turdilho que ele já tinha, a pequena figura rabina, tudo se me pregou na memória. E o tambalear do vagão nos trilhos naquela noite de alto céu sem bruma.
   - Enredas bem os teus enredos – disse meu pai entre maravilhado e distraído.
   - Que falo certo, e isso não me pesa…..Tenho como testemunha um cafezal que podei com a minha tesoura antes de me vir embora. Ainda lá está cafezal. E no último pé botei-lhe duas letras, que foram um A e um B. Não era Ano Bom, não era nada disso. Era Adeus Brasil. Assim a luz do sol me alumie, como não foi aparença.
   - Eu fio-me – tornou a Rata, moída de ronha cega. Olha que pecas! Olha que pecas!
   Eu tive de repente medo. Quem viajava comigo naquele escuro lugar? Viam-se os pinheiros e os postes desenhados no claro da lua. Os fechos de cobre da urna tremiam levemente. Àquela hora, em casa, já a ceia tinha sido servida; e os gatos mediam a própria sombra, com elásticos passos depois dum banquete de espinhas. Não havia presépio; só um Cristo de barro dentro dum fanal, com cravos nas mãos, pintados de purpurina. Eu não recebia presentes – era demasiado pueril e até ridículo dar presentes a quem se ama. O amor não se comemora. E o Natal até era mais belo quando era obscuro e quase inesperado no decurso dos dias sem história. Perguntei lá em casa:
   - O Miguel Cunha mente muito?
   - Como uma cesta rota”
(Agustina Bessa Luís, em “A Brusca”, extrato do conto Correio da Noite)

 Peniche, 31 de Março de 2018
António J. R. Barreto

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