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domingo, 18 de setembro de 2016

As justificações de Rousseau a madame de Francueil

 
 
Entrée de l'Exposition Universelle de Jean Beraud
 
Ninguém se conhece sem ter sido submetido às circunstâncias mais adversas. A luta pela sobrevivência liberta todas as fraquezas do homem conferindo-lhe capacidade para o despojamento total do seu amor-próprio. Todas as indignidades, todas as barbaridades, todas as submissões são possíveis, num contexto de grande adversidade. Todos os dias o vemos, dois mil anos após Cristo.  

O século XVIII francês foi de transição económica e política, assistindo-se ao fim da economia feudal e do absolutismo e à introdução da contratação livre e do parlamentarismo com representação popular. A turbulência económica resultante do desmantelamento da estrutura vigente que culminou com fim do trabalho servo e escravo, agravou a vida dos camponeses, agora livres mas sem terra nem amos nem senhores, não restando a muitos deles outro destino senão a vagabundagem e a marginalidade que os conduziria ao trabalho forçado, nas casas comunais, ou à forca.
 
É neste contexto que Jean Jaques Rosseau, homem de muitos talentos, se amantizou com uma mulher abastada, que tratou de abandonar logo que se lhe acabou a fortuna, trocando-a por outra com a qual recusou casar-se e de quem teve cinco filhos que entregou ao orfanato público sem cuidar de salvaguardar o seu reconhecimento futuro.
 
Rousseau, recusando assumir compromissos com as mulheres com quem viveu, para não sentir prejudicada a sua liberdade natural, desmereceu as suas reflexões expostas no seu "Contrato Social" onde preconiza a necessidade de o homem aceitar a perda de parte direitos  naturais ilimitados, em troca da liberdade civil e do direito de propriedade. Desrespeitou  a dignidade daquelas mulheres beneficiando da sua generosidade e afeto, sem outra contrapartida além da que atribuiu aos ricos face aos pobres, aceitando que repartissem com ele os seus bens   a troco da honra de o servirem indefinidamente.
 
Justifica Rousseau a entrega dos cinco filhos ao orfanato público com a precariedade financeira, a incompatibilidade dos afazeres familiares  com a ocupação de escritor, a confiança nos serviços públicos e o caráter saudável e enaltecedor do trabalhador agrícola, profissão que julgava destinada aos filhos.
 
A incapacidade de garantir o mínimo de condições de subsistência e educação a um filho, justifica sua entrega a quem tenha condições para tal, suscitando compreensão e comiseração pela intensidade da mágoa que induz no autor. Podia ser o caso, dadas as condições de completa miséria em que viviam os cidadãos franceses naquela época, à exceção dos eclesiastas, da alta nobreza e da alta burguesia. Mas não é. E não é porque Rosseau não amava os filhos como jurava, pois se assim fosse teria tido o cuidado de os identificar para mais tarde os reencontrar e acompanhar. E não o fez!
 
Rosseau valorizava a sua liberdade acima de tudo ao ponto de convocar terceiros - as suas duas mulheres - na sua promoção, alegando com desfaçatez, que os cuidados que os filhos lhe exigiriam impedi-lo-iam de exercer as tarefas de pensador, escritor e músico, que escolhera para si próprio. Mais uma demonstração da ausência de amor pelos filhos e do egotismo que o caracterizaram.
 
A confiança que dizia ter no orfanato público não tem sustentação, dada a profunda instabilidade social e económica inerente à construção duma nova ordem política, caracterizada pela incipiência, fragilidade e volatilidade das instituições públicas. Rousseau sabia disso e dizia confiar no oposto, o que faz dele hipócrita e cobarde.
 
Assegurou ainda a madame de Francueil, a quem suplicava acolhimento da sua segunda companheira - de quem, num ato abjeto, afinal, quereria ver-se livre, por estar doente -, que, ainda que tivesse condições, jamais educaria os filhos pelos padrões da alta sociedade, enaltecendo o trabalho agrícola classificando-o de digno e salutar, julgando que seria esse o encaminhamento profissional que o orfanato daria aos seus filhos. Ora, como não conhecia os filhos estava impossibilitado de o confirmar. Por outro lado, o trabalhador agrícola, graças à nova ordem, ficou entregue a si próprio, à sua capacidade de vender o único bem que possuía, a sua força de trabalho, em condições ainda mais precárias e miseráveis que anteriormente, tendo por horizonte o trabalho forçado comunal ou a forca.

Mas, se Rousseau valorizava tanto o trabalho agrícola enquanto meio dignificante da condição humana mais que qualquer outro, porque não o adotou ele para si próprio, o que lhe teria permitido manter a sua família e educar os seus filhos disfrutando do seu afeto? Na verdade, Rosseau não necessitava do afeto de ninguém; satisfazia-se com o máximo de liberdade que conseguia amando-se a si próprio. O seu carater abjeto fica mais uma vez exposto.
 
Ainda teve a desfaçatez de, suplicando ajuda, acusar madame de Francueil e a classe aristocrática em geral - que, afinal, lhe comprava os trabalhos que ia produzindo e difundia as suas ideias -, de roubarem o pão dos filhos em resultado da injusta concentração da riqueza que caracterizava a sociedade medieval. Um ato de extorsão puro, pela indução na solicitada benfeitora do sentimento de culpa e da obrigatoriedade de ajudar, consequência das injustiças sociais  das quais a considerava corresponsável, desobrigando-se desde logo de reconhecimento pelo ato de solidariedade que lhe suplicava.
 
Por tudo isto, considero Jean Jaques Rousseou um ser paradoxal, não só pelo conteúdo dos seus trabalhos em que, por exemplo, defendendo a democracia declarava-a inacessível aos homens, ou defendendo a liberdade civil praticava a liberdade natural, mas, sobretudo, pela insensibilidade que revelou; relativamente aos filhos, que ostensivamente desprezou e nunca chegou a conhecer, indiferente ao seu futuro; relativamente às mulheres que o apoiaram e amaram, com as quais nunca aceitou o vínculo do casamento; até, relativamente a madame de Francueil cuja bonomia suscitava. Profundamente hipócrita, usava a sua extraordinária capacidade retórica para mascarar o seu exacerbado egotismo, caracterizado pela não assunção de qualquer responsabilidade ou vínculo relativamente aos que o apoiavam materialmente e afetivamente.
 
Rosseau ilustre iluminista, foi um ser desprezível, responsável pela produção de princípios fundadores das sociedades modernas ocidentais - a democracia representativa -, mas também de distorções e contradições, que se refletem nalgumas elites e nas sociedades atuais.
 
Em seu abono, apenas o facto de ser oriundo de uma família calvinista, apesar de tudo cristã, por isso alvo de segregação social na sequência do conflito religioso que eclodira na  guerra dos trinta anos do século anterior, 1618 a 1648, deixando sequelas até aos dias de hoje.

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