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sábado, 21 de janeiro de 2023

Memórias de Bordo

  

O fim de uma era (5)


   - Isto parece um campo de concentração! - Disse para comigo. Navio parado, falta de ocupação - só a caldeira auxiliar e o gerador de emergência estavam ativos -, data de desembarque indeterminada. Foi a fase mais penosa da viagem.

   Num belo dia alguém anunciou; - Vamos para terra; vamos parar o gerador. Encontramo-nos lá; o Melo vai “apertar-lhe o pescoço”. Reunimo-nos na casa do gerador de emergência; o pessoal da máquina e creio que alguns colegas da ponte. Naquela sala integralmente pintada de ocre amarelo, paredes, tubagens e máquina, fez-se, espontaneamente, um momento de silêncio, até que, finalmente, o Melo puxou a alavanca do combustível. E o Vera Cruz “morreu”! Em pouco tempo seria transformado num monte de sucata. Vimo-lo mais tarde, esquartejado, quando fomos entregar o Santa Maria; passámos por cima dos seus destroços.

   Um reboque aproximou o navio do cais. Fomos para o convés inferior, coberto, donde saltaríamos para a lancha que se aproximara por bombordo. Não sei porque carga de água, fui o último! A lancha acabara de arrancar quando saltei; medi mal a distância e caí ao mar, de pé! Vestido e calçado!

   De imediato comecei a nadar para me manter à tona, mas ia com demasiada velocidade; resolvi deixar-me ir até pairar. Enquanto mergulhava ia pensando se não estariam por ali cabos ou redes que me atrapalhassem a vida. Tive receio. Quando estabilizei, talvez a quatro ou cinco metros da superfície - não sei - fiquei tranquilo; - não houve incidentes a descer também não haverá a subir. - Pensei, contente, iniciando a ascensão com braçadas enérgicas e sincopadas, lembrando-me que o meu pai caíra ao mar por diversas vezes, uma delas na Gronelândia, com tubarões à mistura, bicho que não haveria por ali.   

   Devo ter emergido com algum aparato - “vinha lançado das profundezas” - e dei logo de caras com a lancha, parada, uns dez metros à minha frente. Alguns colegas, entre os eles o “pintas”, debruçados sobre a borda, perscrutavam a água com ar de apreensão.  Achei bizarro, apontei à lancha, e fiz os cerca de dez metros que me separavam dela no meu melhor crawl de praia. Içaram-me para bordo e fartámo-nos todos de rir. Afinal tudo não passara de um divertido episódio.

   E foi assim, encharcado “como um pinto”, que fiz a minha “exuberante” entrada no hotel, para gáudio dos camaras e espanto dos presentes.

   Nessa noite houve festa. Num hotel próximo fizeram-nos uma espécie de receção. Salão espaçoso, num andar elevado. Dois ou três figurões sentados ao extenso balcão castanho-escuro, de bancos altos, redondos, e uma boa “mão-cheia” de coloridas e divertidas raparigas.

   A consagração dos “artistas” chegara; em primeiro lugar saiu uma secção de fados onde sobressaiu a guitarra; ele foi o “Trem Desmantelado”, mais o “Embuçado”, e a “Fragata”, o “Povo que Lavas no Rio”, “Aquela Feia” e outros mais. Seguiu-se a secção pop; “I Can´t Keep it In”, “Wild World”, “Father and son” , “Hart of Gold”, “Harvest” , “Blowin’In the Wind”, “Yelow River”, “Rose Garden”; umas espanholadas; “La Bamba”, “Isabel”; umas coladeras; “Nh´tone escaderode”, “Toni Pama”; “Nh’a Camisa Novo”; uma brasileira, “Você”; e do “nosso” Paco Bandeira  “Oh Elvas, Oh Elvas”.

   Estava toda a gente bem-disposta e todos foram generosos nos aplausos; no caso dos chineses (as) tratava-se, sobretudo, de cortesia, e a “rapaziada”, pronta para uma qualquer catarse, aplaudiria o que calhasse. Contudo, os “artistas” ficaram satisfeitos, o que é sempre bom sinal.

   Desapareceram os “figurões” ficaram as raparigas para nossa satisfação. Ficámos por ali em alegre e divertido convívio, até nos recolhermos aos respetivos quartos, já bem pela noite dentro.

PS:

- Não me recordo se os temas que tocámos foram mesmo aqueles; era o reportório que tocava na ocasião; podem ter ficado de fora um ou outro, e é possível que tenhamos tocado alguns que não recordo.

- A foto é de uma pequena tertúlia realizada em Peniche nos anos 80 com os meus amigos e amigas da Docapesca, na tasca do Texugo, cujo dono, amigo de longa data, aparece em outras fotos do mesmo evento.


   
(Continua)

Peniche, 18 de Janeiro de 2023

António Barreto

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