Fome Vermelha
Anne
Applebaum
A
Ucrânia, colónia de vários impérios europeus num passado remoto,
nunca conseguiu afirmar-se como país independente, apesar de possuir
identidade própria.
Coração do território Rus no século VI, habitado por tribos
eslavas e viking, a Ucrânia
foi colónia da Comunidade Polaco-Lituana no século XVI e pertenceu
ao Império Russo entre os séculos XVIII e XX.
À
entusiástica participação dos camponeses na modernização da
Rússia sucedeu o desencanto que conduziu às revoltas de 1902 e
1905. Em face dos motins que se seguiram, Nicolau II decidiu atribuir
alguns direitos civis e políticos à Ucrânia.
A
esperança de instauração de um Estado independente na Ucrânia,
emergiu com o colapso dos impérios Russo e Austro-Húngaro,
respetivamente em 1917 e 1918.
Após sangrento conflito militar
entre Ucrânia e Polónia, os territórios austro-húngaros, ficaram
na posse da Polónia até 1939.
Com a dissolução do império russo, o poder caiu brevemente nas
mãos do movimento nacional ucraniano mas nenhum dos seus líderes,
civil ou militar, estava pronto para assumir total responsabilidade
por ele.
Contudo, a 26 de Janeiro de 1918,
surge a declaração de independência da Ucrânia, princípio dum
processo de autodeterminação
que chegou
em 1991 com a dissolução da
União Soviética, de que tinha sido membro fundador em 1922.
Quando, em 1919, foram definidas as
fronteiras dos novos Estados, a Ucrânia foi ignorada.
Declarando-se Estado neutro, a Ucrânia estabeleceu uma parceria
militar com a Rússia e com a Nato, em 1994.
Em
2013,
o Presidente Viktor Yanukovych
suspendeu o acordo de associação com a União Europeia e decidiu
estreitar os laços económicos com a Rússia, originou uma revolta
popular , conhecida como
Euromaiden e, mais
tarde, Revolução da Dignidade, em resultado da qual foi derrubado,
tendo sido eleito novo governo.
Este foi o pano de fundo que
conduziu à
anexação da Crimeia pela
Rússia em março
de 2014 e à guerra no
Donbass, com
separatistas apoiados pela Rússia
em abril do mesmo ano, culminando
na invasão da
Ucrânia pela russia
em 2022.
O ciclo da fome, da grande fome,
começou em 2017, quando Lenine, desesperado
para alimentar os trabalhadores revolucionários que o haviam
conduzido ao poder, enviou o exército vermelho para a Ucrânia
acompanhado de contingentes de requisição com a missão de
confiscar os
cereais
dos camponeses.
“Por amor de Deus, usem toda a
energia e todas as medidas revolucionárias para enviar cereais,
cereais e mais cereais!!! Caso contrário Petrogrado
pode morrer à fome.” Escreveu Lenine em 1918 em telegrama enviado
para a frente Ucraniana.
Nas zonas rurais o sistema consistia
em confiscar cereais com recurso às armas, e depois redistribui-los
pelos soldados, operários, membros do partido e outros elementos
considerados essenciais ao Estado.
Diga-se porém que o confisco de
cereais fora praticado por Nicolau II, nos anos da guerra, criando
estruturas de distribuição estatal monopolista que se revelaram
ineficazes.
Perante o agravamento da fome, em
2018, Lenine impôs um conjunto de medidas que ficaram conhecidas
como “Terror Vermelho”. A
arbitrariedade e a violência substituíram lei. Todos os atropelos
eram justificados pelo “Comunismo
de Guerra”.
Criou-se a Techka,
polícia secreta que, depois de várias fases, foi designada pela
sigla KGB, com a missão de
detetar os cereais escondidos e punir os camponeses envolvidos.
Impôs-se a todos os que não
estivessem envolvidos em operações militares a obrigação de levar
alimentos para a capital.
A Estaline
coube a responsabilidade de
captar provisões no sul da Rússia. Escreveu a Lenine: “não
seremos misericordiosos com ninguém,
nem connosco, nem com os
outros - mas levar-lhe-ei
pão”.
Estaline autorizou detenções e
espancamentos em larga escala e execuções em massa. Arruaceiros do
Exército Vermelho roubavam cereais aos camponeses e aos comerciantes
locais e depois a Techka
fabricava acusações criminosas contra eles.
Tal comportamento suscitou o
protesto de Trotski conduzindo
ao afastamento de Estaline. Trotsky
acabou exilado e
morto por Mercader,
num país da América Latina.
Dividiram
os camponeses em três categorias: os abastados, os médios e os
pobres, respetivamente, kulaks, seredniaks e bedniaks.
Os
kulaks foram um dos
bodes expiatórios da falta de alimentos. Criaram-se comités de
camponeses pobres, os komnezamy,
oferecendo-lhes privilégios e terras em troca do
confisco dos excedentes de cereais dos vizinhos e
das quintas dos kulaks.
Ninguém
escapou à fúria
bolchevique;
nacionalistas ucranianos, burgueses,
aristocratas, ex-funcionários imperiais, anarquistas, socialistas,
todos os que não seguissem a linha definida
pelo Comité Central. Os
cossacos, em especial, eram
severamente punidos por,
em 1918, terem
declarado a independência da
República do Don.
Revoltaram-se os cossacos. Em
1919, os bolcheviques foram,
pela segunda vez, expulsos de Kyiv despoletando por todo o país a
maior e mais violenta revolta dos camponeses na história
contemporânea da Europa.
Conflito bárbaro, no qual
nacionalistas, polacos,
brancos
- forças remanescentes do regime imperial - e negros
- forças anarquistas - lutaram contra o exército vermelho, acabando
derrotadas, por falta de
coordenação.
Dezenas
de milhar de judeus foram mortos, considerados corresponsáveis
pela
falta de alimentos. As
campanhas de perseguição
e extermínio dos judeus, eram
frequentes. O anti-semitismo
na Rússia era uma realidade que vinha do tempo do regime imperial.
Permaneceu
a ideologia anti-bolchevique e o espírito nacionalista dos
ucranianos, que voltaria a
emergir na década de 1920. A década da primeira Grande Fome.
Tudo pertencia ao Estado,
independentemente das consequências para a população, todos eram
obrigados a entregar os cereais e outros bens alimentares às
brigadas comunistas.
Militarizou-se a economia pela mão
de Trotsky e Estaline.
Os renitentes eram presos, espancados, enviados para o Gulag
ou fuzilados. Todas as
barbaridades eram legitimadas pela fé comunista.
A fome espalhou-se entre os
camponeses, estes, famintos e andrajosos vagueavam pelas ruas
suplicando por um bocado de pão em nome de Jesus Cristo. Morriam por
inanição. Alimentavam-se do
que calhava, cães, ratos,
insetos,
sapos, ervas fervidas e
folhas, etc.
Houve casos de canibalismo; alguns
matavam e comiam os próprios filhos. Outros entregavam os filhos ao
Estado na esperança infrutífera de que este os alimentasse, Outros
ainda preferiam atirar os filhos ao rio Volga.
Emergiu a peste bubónica. Os
mortos, espalhados pelas ruas, eram recolhidos como lixo.
Para Lenine era tempo de dar uma
lição aos nacionalistas e à igreja, eliminando,
pela fome, veleidades independentistas àqueles e confiscando os
bens, a
esta. Nem os sinos escaparam.
Para Estaline, era necessário
colonizar os camponeses a fim de permitir a acumulação de capital
necessário à industrialização do país, já que, contrariamente
ao caso da
Inglaterra, a Rússia não dispunha de colónias no exterior.
O jornalista americano F.
A. Mackenzie descreveu o cenário
na estação ferroviária de Samara:
“Ali estavam miúdos, altos e
esqueléticos, magros para além de qualquer noção de magreza que
os ocidentais possam imaginar, cobertos de trapos e sujidade. Ali
estavam mulheres, algumas sentadas no chão meio-inconscientes,
atordoadas pela fome, pela miséria e pelo infortúnio (…)
Ali estavam mães pálidas a
tentar alimentar os bebés moribundos com os seios secos. Se entre
nós voltasse a surgir um Dante, poderia escrever um novo Inferno
depois de visitar uma destas
estações rodoviárias,”
O regime reconheceu a catástrofe,
pós em marcha um plano de ajuda alimentar e pediu auxílio externo.
A mais relevante das entidades que
acorreram
foi a American Relief Administration,
(ARA) - dirigida por Herbert
Hoover, futuro presidente dos
EUA - que já operava na
Europa. Num ambiente de permanente desconfiança, a
ARA chegou a alimentar cerca
de 11 milhões de pessoas diariamente e
a distribuir milhares de cabazes de cuidados básicos e de
medicamentos.
Ao ter conhecimento da exportação
de cereais por parte do regime bolchevique num contexto de fome
extrema da população, a ARA, cancelou o seu programa de ajuda e
abandonou o país.
Lenine, paranoico, ordenou às
equipas de requisição de cereais: “Façam 15 a 20 reféns de
cereais em cada aldeia e, caso as quotas não sejam atingidas,
enfileirem-nos contra um muro”. Se a tática falhasse os reféns
deviam ser fuzilados como “inimigos do Estado”.
A perseguição aos camponeses com
sucesso e o confisco da sua produção desincentivou-os de
trabalharem com nas suas quintas. Era mais seguro manterem-se pobres,
já que a fome estava garantida em qualquer dos casos.
Ante o fracasso da política de
requisição, Lenine decidiu decretar
a Nova Política Económica, que consistia na substituição
da requisição por um
imposto e na instituição do
comércio condicionado de
produtos alimentares.
Apesar do forte controlo, a
circulação de alimentos começou a funcionar ainda que timidamente.
Não tardou, porém, a acusarem os comerciantes de especulação e
açambarcamento, e a obrigarem os camponeses a vender a sua produção
ao Estado aos preços definidos por este. O fracasso total da nova
política foi inevitável.
Pela mão de Estaline
emergiu a ideia da
coletivização, das quintas coletivas - kolkoz
-, os camponeses entregavam as suas quintas e alfaias e, de
proprietários passavam a trabalhadores das quintas agregadas. Uma
espécie de operários rurais ao serviço do regime, recetivos ao
endoutrinamento bolchevique.
Nem todos estavam de acordo com
esta estratégia. Trotsky defendia
o
recurso
a uma estrutura paramilitar semelhante à que fora usada na guerra
civil. Venceu a tese de Estaline, que aproveitou o processo para
fazer uma purga afastando os concorrentes à chefia do partido.
Relativamente à Ucrânia foram
usadas várias estratégias para dissipar as ideias independentistas.
Depois da dissuasão pela fome, adotou-se
a política de integração e,
finalmente a de extermínio das elites intelectuais e políticas.
Num primeiro tempo fomentou-se
o ensino do ucraniano nas escolas e autorizou-se
o seu uso na tramitação
administrativa, militar e judicial. Receando que a integração
facilitasse a subversão do regime por dentro, decidiu-se
neutralizar
os ucranianos mais influentes.
Nada comovia o Comité Central e o
seu líder, Estaline. Os cereais eram imprescindíveis à exportação
para Ocidente, cujas receitas financiavam a aquisição dos
equipamentos industriais necessários à industrialização do país.
O Gulag,
campos de trabalhos forçados, para onde eram enviados dissidentes,
camponeses, funcionários, asseguravam a mão-de-obra necessária. A
reputação externa do regime estava em causa.
Aumentou a coerção sobre os
camponeses e todos os envolvidos na recolha de alimentos. Os
incumpridores eram tratados como ladrões, presos, espancados,
deportados ou fuzilados. Tudo
pertencia ao Estado.
As novas quotas de produção
eram incumpríveis. Quintas
coletivas, quintas privadas, aldeias e cidades sofriam
penalizações incomportáveis. Uma simples côdea, alguns grãos,
tudo o que fosse comestível tinha que ser entregue às brigadas
bolcheviques. Estas, por sua vez, também não escapavam à punição
se não conseguiam obter as quotas que lhes tinham sido atribuídas.
Ao aumento de quotas correspondia
mais fome e menos produção. Sem sementes nem forças, os camponeses
vagueavam, andrajosos, famintos, ventres inchados, pelas ruas, pelas
estações ferroviárias, suplicando por um pedaço de pão.
Metidos em viaturas eram despejados
nos campos, longe das cidades, donde eram recolhidos e despejados,
vivos e mortos, para valas ou ravinas.
Foram muitos os que conseguiram
fugir para os países limítrofes, Polónia em especial, em
tal quantidade que Estaline, com medo do impacto político, fechou
fronteiras, proibiu a venda de bilhetes de comboio, colocou guardas
nas estradas e instituiu um passaporte interno, sem o qual
ninguém podia circular. Os camponeses ficavam prisioneiros nas suas
terras onde morreriam por inanição.
Chegou
a 1932, 1933, anos da Grande Fome, os anos do holodomor,
que, durante muitos anos se escondeu do exterior e ainda hoje se
tenta negar.
Estima-se que terão morrido à
fome entre 4 a 5 milhões de pessoas na Ucrânia.
Só após 1984 Estaline aliviou o
sofrimento dos camponeses, reduzindo as quotas e permitindo-lhes o
uso de alguns alimentos .
“A vida não voltou ao “normal”;
nunca mais voltaria. Porém, lentamente, a Ucrânia parou de morrer à
fome.”
Gareth Jones, jornalista
galês, viajou pelo interior Rússia e da Ucrânia, falou com
camponeses, ouviu as suas
histórias, testemunhou o
descalabro humanitário, denunciou-o em conferências de imprensa e,
a custo, conseguiu ver publicados três artigos no Guardian,
sob anonimato. A
Ocidente, porém, por interesses políticos, económicos ou
militares, ninguém deu crédito aos seus relatos.
“No comboio, um comunista negou
que existisse fome. Atirei uma côdea de pão do meu fornecimento
pessoal para uma escarradeira. Um camponês que viajava na mesma
carruagem foi buscá-la e devorou-a vorazmente. Atirei uma casca de
laranja para a escarradeira e o camponês voltou a ir buscá-la e
devorá-la.”
“A liderança atual da Rússia
conhece sobremaneira esta história. Tal como em 1932 quando Estaline
disse a Kaganovich que
perder a Ucrânia era a sua maior preocupação, o atual governo
russo também acredita que uma Ucrânia soberana, democrática e
estável, ligada ao resto da Europa por laços de cultura e comércio,
constitui uma ameaça aos interesses dos líderes russos. Afinal, se
a Ucrânia se tornar demasiado Europeia – se conseguir algo que se
assemelhe a uma integração bem- sucedida no Ocidente - isso poderia
dar azo a que os russos perguntassem, porque não nós?”
“A fome e as suas consequências
deixaram marcas terríveis. Porém, e embora as feridas permaneçam,
milhões de ucranianos estão, pela primeira vez desde 1933, a tentar
finalmente curá-las.”
Anne Applebaum
Peniche,
28 de Setembro de 2025
António
Barreto
Créditos:
Fome Vermelha - Anne Applebaum