Publicação em destaque

Olhando Para Dentro (notas)

Olhando Para Dentro 1930-1960 (Bruno Cardoso Reis) (Em História Política Contemporânea, Portugal 1808-2000, Maphre - nota...

Pesquisar neste blogue

sábado, 22 de novembro de 2025

A Propósito de Imigração

 

A Propósito de Imigração



Deve haver um fundo de verdade na ideia do quinto império de que falaram o Padre António Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva. Algo que nos escapa hoje - pelo menos a mim -, que os levou a acreditar num talento natural dos Portugueses para promover a concórdia entre os povos.


Há, porém, algo que reconheço como verdadeiro, a capacidade excecional dos portugueses se adaptarem a povos de culturas diferentes.


No que me diz respeito, não nego que tenho uma certa satisfação, e até uma pontinha de orgulho, por ver gente que escolhe o nosso país para viver e trabalhar lado a lado connosco. É uma espécie de reconhecimento da nossa humanidade. Para além da vertente económica o enriquecimento cultural consequente, é inegável.


Apesar de a grande maioria dos portugueses pensar da mesma forma, como acredito, uma onda de crispação varre o país estabelecendo-se uma nova fronteira política entre esquerda e direita, com aqueles a defender fronteiras abertas e estes a necessidade de controlo das mesmas.


Grande parte da população tem medo, antes de mais pela dimensão do fenómeno. Cerca de dois milhões de pessoas - por enquanto - excede em muito o que a economia pode comportar. Serão necessárias duas ou três décadas para criar dois milhões de novos postos de trabalho, pelo menos.


Agravamento dos níveis de segurança pública, sobrecarga das estruturas sociais, saúde, educação, transportes, etc., são consequências naturais que suportam o medo transformado em revolta dos nativos, preteridos e sobrecarregados fiscalmente.


Mas a imigração não é toda igual. Se os oriundos das ex-colónias são recebidos com naturalidade e simpatia, muitos deles, frustrados pela miséria atual nos seus próprios países, instigados por agentes políticos internos, exigem ressarcimento pelos danos do colonialismo, ignorando os respetivos benefícios, numa postura de expressiva hostilidade.


Mais sério, porém, é o caso dos rumores que dão conta da presença em território nacional de organizações criminosas multinacionais, como os comandos vermelhos e o primeiro comando da capital, ambos de origem brasileira, ligados ao narcotráfico e à lavagem de dinheiro. Outras, com origem na Europa de leste e na Ásia dedicam-se à exploração da mendicidade, da prostituição, da imigração clandestina e à lavagem de capitais.

Não menos grave são os receios do radicalismo islâmico, pela facilidade de dissimulação dos respetivos operacionais entre a comunidade muçulmana integrada. s exemplos que nos chegam de fora, Reino Unido, França e outros países,são demasiado preocupantes para serem ignorados.


A leniência dos governos e autoridades associada ao apoio incondicional dos partidos de esquerda aos imigrantes, os casos de discriminação dos portugueses, suscitam nestes fundados receios e especulação acerca dos propósitos não explícitos deste surto migratório.


Ganhou corpo a teoria da substituição das populações. A redução do peso relativo dos conservadores serve os interesses do federalismo europeu. Na frente interna os partidos de esquerda vêm na imigração uma nova causa capaz de lhes proporcionar a relevância política perdida.


Este movimento migratório iniciou-se com a guerra da Síria, cujos contendores, EUA e Rússia, vêm na integração europeia uma ameaça económica e potencialmente militar. Hoje, acredito que esta invasão foi planeada com o propósito de desagregar e enfraquecer a Europa inviabilizando uma reação eficaz à invasão russa da Ucrânia.


O pacto para as migrações, iniciativa do inefável secretário-geral das Nações Unidas, incondicionalmente aceite pela União Europeia e pelo governo de Portugal, exponenciou esta problemática abrindo uma crise de consequências imprevisíveis para as próximas décadas. Crise que, apesar de dramática, não suscita a menor preocupação por parte do Sr Guterres, corresponsável por ela.


A falta de confiança nas democracias alastra entre as populações. O sentimento patriótico ganha força. O conceito de apátrida começa a fazer sentido entre os defensores do caos migratório. Espontaneamente, surgem focos de contestação e revolta, de cariz conservador. Emergem os partidos nacionalistas. Instala-se, por toda a Europa um ambiente de guerra civil. A probabilidade de envolvimento direto dos europeus na guerra da Ucrânia, contra os russos e seus aliados é real. A incerteza e o medo instalam-se.

No que me diz respeito, considero que a imigração económica deve ser condicionada às necessidades do país e à salvaguarda da segurança interna. Os refugiados de guerra ou de catástrofes naturais devem ser acolhidos tantos quanto permitam as capacidades do país, com a condição de repatriamento futuro, sem prejuízo de integração social e económica possíveis. Apesar dos enormes desequilíbrios demográficos, apoio a liberdade de circulação e dupla nacionalidade entre as populações de Portugal e das ex-colónias. O acesso à nacionalidade de cidadãos de outras origem deve ser permitido a quem tenha envolvimento histórico direto ou de ascendentes - jus sanguinis - com Portugal. Os restantes casos - jus solis - devem ser fortemente condicionados à confirmação de algum tipo de afinidade com os portugueses, seja envolvimento social, económico ou outro, reconhecido respeito pela história do país e do seu papel no mundo, e conhecimento da língua e da nossa história.


Se o 25 de abril de 1974 foi um tempo de euforia e esperança de liberdade e progresso económico e social, cinquenta anos passados, o espetro do desaparecimento da nação portuguesa ganha forma face às dinâmicas do federalismo europeu e do globalismo promovido pela ONU. E isso, é algo não aceito.


Tal como a adesão à CEE, o recurso maciço a cidadãos externos é fruto da consciência da falência da terceira república.




Agostinho da Silva

Peniche, 22 de Novembro de 2025

António Barreto

domingo, 28 de setembro de 2025

Fome Vermelha

 

Fome Vermelha

Anne Applebaum



A Ucrânia, colónia de vários impérios europeus num passado remoto, nunca conseguiu afirmar-se como país independente, apesar de possuir identidade própria.

Coração do território Rus no século VI, habitado por tribos eslavas e viking, a Ucrânia foi colónia da Comunidade Polaco-Lituana no século XVI e pertenceu ao Império Russo entre os séculos XVIII e XX.


À entusiástica participação dos camponeses na modernização da Rússia sucedeu o desencanto que conduziu às revoltas de 1902 e 1905. Em face dos motins que se seguiram, Nicolau II decidiu atribuir alguns direitos civis e políticos à Ucrânia.

A esperança de instauração de um Estado independente na Ucrânia, emergiu com o colapso dos impérios Russo e Austro-Húngaro, respetivamente em 1917 e 1918.


Após sangrento conflito militar entre Ucrânia e Polónia, os territórios austro-húngaros, ficaram na posse da Polónia até 1939.


Com a dissolução do império russo, o poder caiu brevemente nas mãos do movimento nacional ucraniano mas nenhum dos seus líderes, civil ou militar, estava pronto para assumir total responsabilidade por ele.

Contudo, a 26 de Janeiro de 1918, surge a declaração de independência da Ucrânia, princípio dum processo de autodeterminação que chegou em 1991 com a dissolução da União Soviética, de que tinha sido membro fundador em 1922.


Quando, em 1919, foram definidas as fronteiras dos novos Estados, a Ucrânia foi ignorada.


Declarando-se Estado neutro, a Ucrânia estabeleceu uma parceria militar com a Rússia e com a Nato, em 1994.


Em 2013, o Presidente Viktor Yanukovych suspendeu o acordo de associação com a União Europeia e decidiu estreitar os laços económicos com a Rússia, originou uma revolta popular , conhecida como Euromaiden e, mais tarde, Revolução da Dignidade, em resultado da qual foi derrubado, tendo sido eleito novo governo.


Este foi o pano de fundo que conduziu à anexação da Crimeia pela Rússia em março de 2014 e à guerra no Donbass, com separatistas apoiados pela Rússia em abril do mesmo ano, culminando na invasão da Ucrânia pela russia em 2022.


O ciclo da fome, da grande fome, começou em 2017, quando Lenine, desesperado para alimentar os trabalhadores revolucionários que o haviam conduzido ao poder, enviou o exército vermelho para a Ucrânia acompanhado de contingentes de requisição com a missão de confiscar os cereais dos camponeses.


Por amor de Deus, usem toda a energia e todas as medidas revolucionárias para enviar cereais, cereais e mais cereais!!! Caso contrário Petrogrado pode morrer à fome.” Escreveu Lenine em 1918 em telegrama enviado para a frente Ucraniana.


Nas zonas rurais o sistema consistia em confiscar cereais com recurso às armas, e depois redistribui-los pelos soldados, operários, membros do partido e outros elementos considerados essenciais ao Estado.


Diga-se porém que o confisco de cereais fora praticado por Nicolau II, nos anos da guerra, criando estruturas de distribuição estatal monopolista que se revelaram ineficazes.


Perante o agravamento da fome, em 2018, Lenine impôs um conjunto de medidas que ficaram conhecidas como “Terror Vermelho”. A arbitrariedade e a violência substituíram lei. Todos os atropelos eram justificados pelo “Comunismo de Guerra”.


Criou-se a Techka, polícia secreta que, depois de várias fases, foi designada pela sigla KGB, com a missão de detetar os cereais escondidos e punir os camponeses envolvidos.


Impôs-se a todos os que não estivessem envolvidos em operações militares a obrigação de levar alimentos para a capital.


A Estaline coube a responsabilidade de captar provisões no sul da Rússia. Escreveu a Lenine: “não seremos misericordiosos com ninguém, nem connosco, nem com os outros - mas levar-lhe-ei pão”.


Estaline autorizou detenções e espancamentos em larga escala e execuções em massa. Arruaceiros do Exército Vermelho roubavam cereais aos camponeses e aos comerciantes locais e depois a Techka fabricava acusações criminosas contra eles.


Tal comportamento suscitou o protesto de Trotski conduzindo ao afastamento de Estaline. Trotsky acabou exilado e morto por Mercader, num país da América Latina.


Dividiram os camponeses em três categorias: os abastados, os médios e os pobres, respetivamente, kulaks, seredniaks e bedniaks.


Os kulaks foram um dos bodes expiatórios da falta de alimentos. Criaram-se comités de camponeses pobres, os komnezamy, oferecendo-lhes privilégios e terras em troca do confisco dos excedentes de cereais dos vizinhos e das quintas dos kulaks.


Ninguém escapou à fúria bolchevique; nacionalistas ucranianos, burgueses, aristocratas, ex-funcionários imperiais, anarquistas, socialistas, todos os que não seguissem a linha definida pelo Comité Central. Os cossacos, em especial, eram severamente punidos por, em 1918, terem declarado a independência da República do Don.


Revoltaram-se os cossacos. Em 1919, os bolcheviques foram, pela segunda vez, expulsos de Kyiv despoletando por todo o país a maior e mais violenta revolta dos camponeses na história contemporânea da Europa.


Conflito bárbaro, no qual nacionalistas, polacos, brancos - forças remanescentes do regime imperial - e negros - forças anarquistas - lutaram contra o exército vermelho, acabando derrotadas, por falta de coordenação.


Dezenas de milhar de judeus foram mortos, considerados corresponsáveis pela falta de alimentos. As campanhas de perseguição e extermínio dos judeus, eram frequentes. O anti-semitismo na Rússia era uma realidade que vinha do tempo do regime imperial.


Permaneceu a ideologia anti-bolchevique e o espírito nacionalista dos ucranianos, que voltaria a emergir na década de 1920. A década da primeira Grande Fome.


Tudo pertencia ao Estado, independentemente das consequências para a população, todos eram obrigados a entregar os cereais e outros bens alimentares às brigadas comunistas.


Militarizou-se a economia pela mão de Trotsky e Estaline. Os renitentes eram presos, espancados, enviados para o Gulag ou fuzilados. Todas as barbaridades eram legitimadas pela fé comunista.


A fome espalhou-se entre os camponeses, estes, famintos e andrajosos vagueavam pelas ruas suplicando por um bocado de pão em nome de Jesus Cristo. Morriam por inanição. Alimentavam-se do que calhava, cães, ratos, insetos, sapos, ervas fervidas e folhas, etc.


Houve casos de canibalismo; alguns matavam e comiam os próprios filhos. Outros entregavam os filhos ao Estado na esperança infrutífera de que este os alimentasse, Outros ainda preferiam atirar os filhos ao rio Volga.


Emergiu a peste bubónica. Os mortos, espalhados pelas ruas, eram recolhidos como lixo.


Para Lenine era tempo de dar uma lição aos nacionalistas e à igreja, eliminando, pela fome, veleidades independentistas àqueles e confiscando os bens, a esta. Nem os sinos escaparam.


Para Estaline, era necessário colonizar os camponeses a fim de permitir a acumulação de capital necessário à industrialização do país, já que, contrariamente ao caso da Inglaterra, a Rússia não dispunha de colónias no exterior.


O jornalista americano F. A. Mackenzie descreveu o cenário na estação ferroviária de Samara:


Ali estavam miúdos, altos e esqueléticos, magros para além de qualquer noção de magreza que os ocidentais possam imaginar, cobertos de trapos e sujidade. Ali estavam mulheres, algumas sentadas no chão meio-inconscientes, atordoadas pela fome, pela miséria e pelo infortúnio (…) Ali estavam mães pálidas a tentar alimentar os bebés moribundos com os seios secos. Se entre nós voltasse a surgir um Dante, poderia escrever um novo Inferno depois de visitar uma destas estações rodoviárias,”

O regime reconheceu a catástrofe, pós em marcha um plano de ajuda alimentar e pediu auxílio externo.


A mais relevante das entidades que acorreram foi a American Relief Administration, (ARA) - dirigida por Herbert Hoover, futuro presidente dos EUA - que já operava na Europa. Num ambiente de permanente desconfiança, a ARA chegou a alimentar cerca de 11 milhões de pessoas diariamente e a distribuir milhares de cabazes de cuidados básicos e de medicamentos.


Ao ter conhecimento da exportação de cereais por parte do regime bolchevique num contexto de fome extrema da população, a ARA, cancelou o seu programa de ajuda e abandonou o país.


Lenine, paranoico, ordenou às equipas de requisição de cereais: “Façam 15 a 20 reféns de cereais em cada aldeia e, caso as quotas não sejam atingidas, enfileirem-nos contra um muro”. Se a tática falhasse os reféns deviam ser fuzilados como “inimigos do Estado”.


A perseguição aos camponeses com sucesso e o confisco da sua produção desincentivou-os de trabalharem com nas suas quintas. Era mais seguro manterem-se pobres, já que a fome estava garantida em qualquer dos casos.

Ante o fracasso da política de requisição, Lenine decidiu decretar a Nova Política Económica, que consistia na substituição da requisição por um imposto e na instituição do comércio condicionado de produtos alimentares.


Apesar do forte controlo, a circulação de alimentos começou a funcionar ainda que timidamente. Não tardou, porém, a acusarem os comerciantes de especulação e açambarcamento, e a obrigarem os camponeses a vender a sua produção ao Estado aos preços definidos por este. O fracasso total da nova política foi inevitável.


Pela mão de Estaline emergiu a ideia da coletivização, das quintas coletivas - kolkoz -, os camponeses entregavam as suas quintas e alfaias e, de proprietários passavam a trabalhadores das quintas agregadas. Uma espécie de operários rurais ao serviço do regime, recetivos ao endoutrinamento bolchevique.


Nem todos estavam de acordo com esta estratégia. Trotsky defendia o recurso a uma estrutura paramilitar semelhante à que fora usada na guerra civil. Venceu a tese de Estaline, que aproveitou o processo para fazer uma purga afastando os concorrentes à chefia do partido.


Relativamente à Ucrânia foram usadas várias estratégias para dissipar as ideias independentistas. Depois da dissuasão pela fome, adotou-se a política de integração e, finalmente a de extermínio das elites intelectuais e políticas.


Num primeiro tempo fomentou-se o ensino do ucraniano nas escolas e autorizou-se o seu uso na tramitação administrativa, militar e judicial. Receando que a integração facilitasse a subversão do regime por dentro, decidiu-se neutralizar os ucranianos mais influentes.


Nada comovia o Comité Central e o seu líder, Estaline. Os cereais eram imprescindíveis à exportação para Ocidente, cujas receitas financiavam a aquisição dos equipamentos industriais necessários à industrialização do país.


O Gulag, campos de trabalhos forçados, para onde eram enviados dissidentes, camponeses, funcionários, asseguravam a mão-de-obra necessária. A reputação externa do regime estava em causa.


Aumentou a coerção sobre os camponeses e todos os envolvidos na recolha de alimentos. Os incumpridores eram tratados como ladrões, presos, espancados, deportados ou fuzilados. Tudo pertencia ao Estado.


As novas quotas de produção eram incumpríveis. Quintas coletivas, quintas privadas, aldeias e cidades sofriam penalizações incomportáveis. Uma simples côdea, alguns grãos, tudo o que fosse comestível tinha que ser entregue às brigadas bolcheviques. Estas, por sua vez, também não escapavam à punição se não conseguiam obter as quotas que lhes tinham sido atribuídas.


Ao aumento de quotas correspondia mais fome e menos produção. Sem sementes nem forças, os camponeses vagueavam, andrajosos, famintos, ventres inchados, pelas ruas, pelas estações ferroviárias, suplicando por um pedaço de pão.


Metidos em viaturas eram despejados nos campos, longe das cidades, donde eram recolhidos e despejados, vivos e mortos, para valas ou ravinas.


Foram muitos os que conseguiram fugir para os países limítrofes, Polónia em especial, em tal quantidade que Estaline, com medo do impacto político, fechou fronteiras, proibiu a venda de bilhetes de comboio, colocou guardas nas estradas e instituiu um passaporte interno, sem o qual ninguém podia circular. Os camponeses ficavam prisioneiros nas suas terras onde morreriam por inanição.


Chegou a 1932, 1933, anos da Grande Fome, os anos do holodomor, que, durante muitos anos se escondeu do exterior e ainda hoje se tenta negar.


Estima-se que terão morrido à fome entre 4 a 5 milhões de pessoas na Ucrânia.


Só após 1984 Estaline aliviou o sofrimento dos camponeses, reduzindo as quotas e permitindo-lhes o uso de alguns alimentos .


A vida não voltou ao “normal”; nunca mais voltaria. Porém, lentamente, a Ucrânia parou de morrer à fome.”


Gareth Jones, jornalista galês, viajou pelo interior Rússia e da Ucrânia, falou com camponeses, ouviu as suas histórias, testemunhou o descalabro humanitário, denunciou-o em conferências de imprensa e, a custo, conseguiu ver publicados três artigos no Guardian, sob anonimato. A Ocidente, porém, por interesses políticos, económicos ou militares, ninguém deu crédito aos seus relatos.


No comboio, um comunista negou que existisse fome. Atirei uma côdea de pão do meu fornecimento pessoal para uma escarradeira. Um camponês que viajava na mesma carruagem foi buscá-la e devorou-a vorazmente. Atirei uma casca de laranja para a escarradeira e o camponês voltou a ir buscá-la e devorá-la.”


A liderança atual da Rússia conhece sobremaneira esta história. Tal como em 1932 quando Estaline disse a Kaganovich que perder a Ucrânia era a sua maior preocupação, o atual governo russo também acredita que uma Ucrânia soberana, democrática e estável, ligada ao resto da Europa por laços de cultura e comércio, constitui uma ameaça aos interesses dos líderes russos. Afinal, se a Ucrânia se tornar demasiado Europeia – se conseguir algo que se assemelhe a uma integração bem- sucedida no Ocidente - isso poderia dar azo a que os russos perguntassem, porque não nós?”


A fome e as suas consequências deixaram marcas terríveis. Porém, e embora as feridas permaneçam, milhões de ucranianos estão, pela primeira vez desde 1933, a tentar finalmente curá-las.”



Anne Applebaum

Peniche, 28 de Setembro de 2025

António Barreto


Créditos: Fome Vermelha - Anne Applebaum


sábado, 31 de maio de 2025

Perpétuos analfabetos

 

Perpétuos analfabetos



Tenho um certo desconforto, uma quase fobia, quando tenho que frequentar qualquer instituição pública: câmaras municipais, juntas de freguesia, finanças - ui! -, centros de saúde, hospitais, registos civil e predial, etc..


É algo que vem de longe. Recordo-me do alvoroço que havia lá por casa quando, pelos anos 50/60, se ia pagar a água na câmara municipal. Uma aflição. Pais fora, cada um na sua lide, um deles lá tinha que fazer um desvio no trajeto do regresso para fazer o pagamento.


Nesse tempo a maior parte da população adulta era analfabeta ou semianalfabeta - nos anos 40 e início dos 50 o ensino obrigatório era a 3ª classe. Gente rude, habituada à incerteza diária, sentiam-se intimidados quando entravam nesses locais. A medo, la perguntavam ao primeiro que lhes aparecia: - “Ah meu senhor, sabe-me dezer onde é que se paga aqui a áuga?” - o pescador, tirava de imediato o boné, em sinal de respeito, como fazia quando calhava ir à igreja. Se lhe pediam assinatura, era o cabo dos trabalhos; lentamente, meio trémulos, lá desenhavam o nome.


Era importante dar uma imagem apatetada para suscitar a indulgência dos zelosos funcionários. Homens que, diariamente enfrentavam a morte, tinham medo de entrar em locais públicos. O medo compulsivo do “papel selado”, traduzido na frase, que, por aqui e ali se ouvia aos supostos delatores: - “embrulho-te numa folha de papel selado que nunca mais tens conserto”.


Ah, mas hoje tudo mudou: democracia, simplificação dos serviços, edifícios modernos, tecnologia avançada, pessoal qualificado, cidadão alfabetizado, emancipado e dignificado. Enfim, um novo paradigma no relacionamento do cidadão com a administração.


tempos tive que me deslocar a uma repartição local para tratar de um assunto, por sinal, resultante dum lapso do respetivo organismo. Sistema de senhas, ajuda imediata a operar a maquineta, cadeiras disponíveis, ecrã com o número de vez. Fantástico! Um luxo!


No momento certo avancei para o respetivo balcão, disse ao que ia. Deram-me um papel e uma caneta. Preferi o portátil e fui para casa esgravatar no PC. Enviei a “redação” para o endereço indicado. Já está. Suspirei de alívio.


Desconfiado, o assunto era sério, voltei de tarde. Em boa hora. Senha, outro balcão, outra pessoa, explicação: - Está aqui, está aqui o seu mail. Eu posso fazer-lhe isso. Mas olhe que devia trazer isto numa pen. E o PDF é o número 5. E é preciso assinatura digital. - comecei a ficar com pele de galinha. -Estou feito ao bife”. -Pensei. - Você quer dado e arregaçado. Não. Para isto não é necessária a assinatura digital, basta o BI. - Renasci, dizendo em voz baixa, gracejando: o que posso fazer é pagar-lhe um cafezinho e pedir perdão a Deus na igreja mais próxima. -Olhe, há aqui uma bem perto!


Safei-me neste primeiro embate. A minha postura de uma certa humildade apalermada, ajudou. A pessoa do outro lado, no meio daquela complexidade, até foi compreensiva e colaborante.


Já disse que o assunto era complexo. Precisava de informações e fui pedi-las no dia seguinte. Chuva se Deus a dava. Estacionamento aí a 100 m do local. -”Agora é que é o “elas!””. - Pensei.


-”Afinal, quem é o senhor? Nós não sabemos quem é! Tem que ir a tal parte pedir uma certidão”. - Lá fui, não era muito longe. A pé. Chuva que era um “regalo”. Repartição cheia. Tirei a senha. - “Seja o que Deus quiser. Estou por tudo.” Uma pessoa a atender, ar cansado e resignado, tal como o público que aguardava a vez suspirando impaciente.



Aí uma hora depois, outra pessoa tratou do meu assunto, num ápice, murmurando -”Não há gente para atender, somos só nós”´. Entregou-me o tal papel a troco de cinco euros. - “Estou safo! Ala para a câmara”, - pensei. Fui, depois de aconselhar uma jovem aflita por uma certidão de uma mota, ou algo do género. E a chuva, fiel, à minha espera. Safou-me o carapuço do blusão.


Cheguei. -”Tem assinatura digital?”. -”Como? O que é isso?” -”Não lhe deram um papelinho quando tirou o cartão de cidadão?. Está lá o pin”. -”Acho que tenho qualquer coisa mas não sei onde está. E estou longe de casa”. Mas não basta a assinatura conforme o cartão de cidadão?”. -”Não! Sabe o que é um regulamento? Para este caso é necessária a assinatura digital!”


“Pronto, pensei que podia simplificar as coisas. Então onde arranjo isso?. -”Pode tratar disso em tal parte”. - Lá fui. Parte do trajeto de carro, parte a pé. Chuva sempre a cair. Eu encharcado que nem um pinto.


Lá chegado, o costume; senha e espera, boas instalações, bons assentos, gente resignada, minha vez. - “Veio em má altura, o sistema está a falhar”. - disse a pessoa que me atendeu, de meia-idade e ar cansado, forçando um sorriso que mais parecia um esgar. - Senti um calafrio; -”como raio vou saber se a altura é boa?”. - “Ah, está com sorte, já funciona”. - “Estou salvo!” - pensei, dizendo, ao que pretendia. Após breve explicação: - “Já está. A chave móvel está ativada, agora já pode assinar com o pin”. - “O pin? - “Sim, aquele que vem com o cartão de cidadão!”. - “Não sei onde está. Estou longe de casa”. -”Espere aqui e vá àquele guiché logo que esteja livre”. Esperei, esperei, entrei à má fila, temendo uma repreensão.


Expliquei-me ante a pessoa, com ar cansado e cordial, que me atendeu. Mais um relambório e...-”diga-me quatro números. - Respondi, sem perceber bem. Era o pin, o famoso pin. -”E este aqui é puk. Não o perca nem dê o pin a ninguém! Olhe que os funcionários costumam pedi-lo. Não pode pedir isto muitas vezes, se o fizer é-lhe cancelado o cartão de cidadão!”. - Chiça! - murmurei.


Fiz a viagem de regresso, parte a pé, parte de carro, chuvinha sempre a cair e eu a escorrer.


”- Cá estou”. - Disse triunfante após o pequeno calvário dos preliminares, entregando os papeis a quem me atendia. Este digitou no PC passou-me um aparelho com teclas e números. -”Ponha aí o código”. - Teclei o pin. -”Não está a dar”. - Fiquei gelado!. -”Dê cá, qual é o pin?”. - Lembrei-me da recomendação de há pouco. -”Quero lá saber”. - Disse-lhe o pin. -” Já deu. Já está!”. -”Aleluia! Boa tarde e obrigado”. Ala para casa.


Acreditem que sei ler, escrever e contar, leio uns livrecos, esgatanho umas guitarradas e, perante este labirinto kafkiano senti-me um analfabeto. Se usasse boné, tinha-o tirado respeitosamente afivelando um ar amedrontado.


Muita coisa mudou, na Administração e nos cidadãos, mas a distância entre ambos permanece imutável. E assim continuará.

                                                                        Edvard Munch


Peniche, 31 de maio de 2025

António Barreto


sábado, 17 de maio de 2025

Nos Mares do Fim do Mundo

 

Nos Mares do Fim do Mundo

Bernardo Santareno


- Era de Ílhavo, sr doutor. Uma peste, uma praga de Deus! Aquilo na era home, era o próprio diabo!…


Tantos e tão cruéis agravos fez, que um dia, durante uma das suas últimas viagens, a tripulação revoltou-se. E tendo-o amarrado de pés e mãos, prestes a baldeá-lo, mantinham-no deitado e seguro sobre a amurada do navio: Hesitavam…

Logo o velho capitão num golpe de audácia:


- Vamos rapazes: Assim não estou bem, doem-me as costas. Resolvam: borda fora p’ró mar; ou então, depressa p’ra dentro!…


Surpreendidos e dominados pela coragem do velho, os homens abrandaram: e puseram-no dentro.

Uma vez em terra nenhum fugiu ao castigo do terrível capitão: um a um desgraçou-os a todos, inexoravelmente.


Adélia Maria

Peniche, 17 de maio de 2025

António Barreto