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Olhando Para Dentro 1930-1960 (Bruno Cardoso Reis) (Em História Política Contemporânea, Portugal 1808-2000, Maphre - nota...

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domingo, 28 de setembro de 2025

Fome Vermelha

 

Fome Vermelha

Anne Applebaum



A Ucrânia, colónia de vários impérios europeus num passado remoto, nunca conseguiu afirmar-se como país independente, apesar de possuir identidade própria.

Coração do território Rus no século VI, habitado por tribos eslavas e viking, a Ucrânia foi colónia da Comunidade Polaco-Lituana no século XVI e pertenceu ao Império Russo entre os séculos XVIII e XX.


À entusiástica participação dos camponeses na modernização da Rússia sucedeu o desencanto que conduziu às revoltas de 1902 e 1905. Em face dos motins que se seguiram, Nicolau II decidiu atribuir alguns direitos civis e políticos à Ucrânia.

A esperança de instauração de um Estado independente na Ucrânia, emergiu com o colapso dos impérios Russo e Austro-Húngaro, respetivamente em 1917 e 1918.


Após sangrento conflito militar entre Ucrânia e Polónia, os territórios austro-húngaros, ficaram na posse da Polónia até 1939.


Com a dissolução do império russo, o poder caiu brevemente nas mãos do movimento nacional ucraniano mas nenhum dos seus líderes, civil ou militar, estava pronto para assumir total responsabilidade por ele.

Contudo, a 26 de Janeiro de 1918, surge a declaração de independência da Ucrânia, princípio dum processo de autodeterminação que chegou em 1991 com a dissolução da União Soviética, de que tinha sido membro fundador em 1922.


Quando, em 1919, foram definidas as fronteiras dos novos Estados, a Ucrânia foi ignorada.


Declarando-se Estado neutro, a Ucrânia estabeleceu uma parceria militar com a Rússia e com a Nato, em 1994.


Em 2013, o Presidente Viktor Yanukovych suspendeu o acordo de associação com a União Europeia e decidiu estreitar os laços económicos com a Rússia, originou uma revolta popular , conhecida como Euromaiden e, mais tarde, Revolução da Dignidade, em resultado da qual foi derrubado, tendo sido eleito novo governo.


Este foi o pano de fundo que conduziu à anexação da Crimeia pela Rússia em março de 2014 e à guerra no Donbass, com separatistas apoiados pela Rússia em abril do mesmo ano, culminando na invasão da Ucrânia pela russia em 2022.


O ciclo da fome, da grande fome, começou em 2017, quando Lenine, desesperado para alimentar os trabalhadores revolucionários que o haviam conduzido ao poder, enviou o exército vermelho para a Ucrânia acompanhado de contingentes de requisição com a missão de confiscar os cereais dos camponeses.


Por amor de Deus, usem toda a energia e todas as medidas revolucionárias para enviar cereais, cereais e mais cereais!!! Caso contrário Petrogrado pode morrer à fome.” Escreveu Lenine em 1918 em telegrama enviado para a frente Ucraniana.


Nas zonas rurais o sistema consistia em confiscar cereais com recurso às armas, e depois redistribui-los pelos soldados, operários, membros do partido e outros elementos considerados essenciais ao Estado.


Diga-se porém que o confisco de cereais fora praticado por Nicolau II, nos anos da guerra, criando estruturas de distribuição estatal monopolista que se revelaram ineficazes.


Perante o agravamento da fome, em 2018, Lenine impôs um conjunto de medidas que ficaram conhecidas como “Terror Vermelho”. A arbitrariedade e a violência substituíram lei. Todos os atropelos eram justificados pelo “Comunismo de Guerra”.


Criou-se a Techka, polícia secreta que, depois de várias fases, foi designada pela sigla KGB, com a missão de detetar os cereais escondidos e punir os camponeses envolvidos.


Impôs-se a todos os que não estivessem envolvidos em operações militares a obrigação de levar alimentos para a capital.


A Estaline coube a responsabilidade de captar provisões no sul da Rússia. Escreveu a Lenine: “não seremos misericordiosos com ninguém, nem connosco, nem com os outros - mas levar-lhe-ei pão”.


Estaline autorizou detenções e espancamentos em larga escala e execuções em massa. Arruaceiros do Exército Vermelho roubavam cereais aos camponeses e aos comerciantes locais e depois a Techka fabricava acusações criminosas contra eles.


Tal comportamento suscitou o protesto de Trotski conduzindo ao afastamento de Estaline. Trotsky acabou exilado e morto por Mercader, num país da América Latina.


Dividiram os camponeses em três categorias: os abastados, os médios e os pobres, respetivamente, kulaks, seredniaks e bedniaks.


Os kulaks foram um dos bodes expiatórios da falta de alimentos. Criaram-se comités de camponeses pobres, os komnezamy, oferecendo-lhes privilégios e terras em troca do confisco dos excedentes de cereais dos vizinhos e das quintas dos kulaks.


Ninguém escapou à fúria bolchevique; nacionalistas ucranianos, burgueses, aristocratas, ex-funcionários imperiais, anarquistas, socialistas, todos os que não seguissem a linha definida pelo Comité Central. Os cossacos, em especial, eram severamente punidos por, em 1918, terem declarado a independência da República do Don.


Revoltaram-se os cossacos. Em 1919, os bolcheviques foram, pela segunda vez, expulsos de Kyiv despoletando por todo o país a maior e mais violenta revolta dos camponeses na história contemporânea da Europa.


Conflito bárbaro, no qual nacionalistas, polacos, brancos - forças remanescentes do regime imperial - e negros - forças anarquistas - lutaram contra o exército vermelho, acabando derrotadas, por falta de coordenação.


Dezenas de milhar de judeus foram mortos, considerados corresponsáveis pela falta de alimentos. As campanhas de perseguição e extermínio dos judeus, eram frequentes. O anti-semitismo na Rússia era uma realidade que vinha do tempo do regime imperial.


Permaneceu a ideologia anti-bolchevique e o espírito nacionalista dos ucranianos, que voltaria a emergir na década de 1920. A década da primeira Grande Fome.


Tudo pertencia ao Estado, independentemente das consequências para a população, todos eram obrigados a entregar os cereais e outros bens alimentares às brigadas comunistas.


Militarizou-se a economia pela mão de Trotsky e Estaline. Os renitentes eram presos, espancados, enviados para o Gulag ou fuzilados. Todas as barbaridades eram legitimadas pela fé comunista.


A fome espalhou-se entre os camponeses, estes, famintos e andrajosos vagueavam pelas ruas suplicando por um bocado de pão em nome de Jesus Cristo. Morriam por inanição. Alimentavam-se do que calhava, cães, ratos, insetos, sapos, ervas fervidas e folhas, etc.


Houve casos de canibalismo; alguns matavam e comiam os próprios filhos. Outros entregavam os filhos ao Estado na esperança infrutífera de que este os alimentasse, Outros ainda preferiam atirar os filhos ao rio Volga.


Emergiu a peste bubónica. Os mortos, espalhados pelas ruas, eram recolhidos como lixo.


Para Lenine era tempo de dar uma lição aos nacionalistas e à igreja, eliminando, pela fome, veleidades independentistas àqueles e confiscando os bens, a esta. Nem os sinos escaparam.


Para Estaline, era necessário colonizar os camponeses a fim de permitir a acumulação de capital necessário à industrialização do país, já que, contrariamente ao caso da Inglaterra, a Rússia não dispunha de colónias no exterior.


O jornalista americano F. A. Mackenzie descreveu o cenário na estação ferroviária de Samara:


Ali estavam miúdos, altos e esqueléticos, magros para além de qualquer noção de magreza que os ocidentais possam imaginar, cobertos de trapos e sujidade. Ali estavam mulheres, algumas sentadas no chão meio-inconscientes, atordoadas pela fome, pela miséria e pelo infortúnio (…) Ali estavam mães pálidas a tentar alimentar os bebés moribundos com os seios secos. Se entre nós voltasse a surgir um Dante, poderia escrever um novo Inferno depois de visitar uma destas estações rodoviárias,”

O regime reconheceu a catástrofe, pós em marcha um plano de ajuda alimentar e pediu auxílio externo.


A mais relevante das entidades que acorreram foi a American Relief Administration, (ARA) - dirigida por Herbert Hoover, futuro presidente dos EUA - que já operava na Europa. Num ambiente de permanente desconfiança, a ARA chegou a alimentar cerca de 11 milhões de pessoas diariamente e a distribuir milhares de cabazes de cuidados básicos e de medicamentos.


Ao ter conhecimento da exportação de cereais por parte do regime bolchevique num contexto de fome extrema da população, a ARA, cancelou o seu programa de ajuda e abandonou o país.


Lenine, paranoico, ordenou às equipas de requisição de cereais: “Façam 15 a 20 reféns de cereais em cada aldeia e, caso as quotas não sejam atingidas, enfileirem-nos contra um muro”. Se a tática falhasse os reféns deviam ser fuzilados como “inimigos do Estado”.


A perseguição aos camponeses com sucesso e o confisco da sua produção desincentivou-os de trabalharem com nas suas quintas. Era mais seguro manterem-se pobres, já que a fome estava garantida em qualquer dos casos.

Ante o fracasso da política de requisição, Lenine decidiu decretar a Nova Política Económica, que consistia na substituição da requisição por um imposto e na instituição do comércio condicionado de produtos alimentares.


Apesar do forte controlo, a circulação de alimentos começou a funcionar ainda que timidamente. Não tardou, porém, a acusarem os comerciantes de especulação e açambarcamento, e a obrigarem os camponeses a vender a sua produção ao Estado aos preços definidos por este. O fracasso total da nova política foi inevitável.


Pela mão de Estaline emergiu a ideia da coletivização, das quintas coletivas - kolkoz -, os camponeses entregavam as suas quintas e alfaias e, de proprietários passavam a trabalhadores das quintas agregadas. Uma espécie de operários rurais ao serviço do regime, recetivos ao endoutrinamento bolchevique.


Nem todos estavam de acordo com esta estratégia. Trotsky defendia o recurso a uma estrutura paramilitar semelhante à que fora usada na guerra civil. Venceu a tese de Estaline, que aproveitou o processo para fazer uma purga afastando os concorrentes à chefia do partido.


Relativamente à Ucrânia foram usadas várias estratégias para dissipar as ideias independentistas. Depois da dissuasão pela fome, adotou-se a política de integração e, finalmente a de extermínio das elites intelectuais e políticas.


Num primeiro tempo fomentou-se o ensino do ucraniano nas escolas e autorizou-se o seu uso na tramitação administrativa, militar e judicial. Receando que a integração facilitasse a subversão do regime por dentro, decidiu-se neutralizar os ucranianos mais influentes.


Nada comovia o Comité Central e o seu líder, Estaline. Os cereais eram imprescindíveis à exportação para Ocidente, cujas receitas financiavam a aquisição dos equipamentos industriais necessários à industrialização do país.


O Gulag, campos de trabalhos forçados, para onde eram enviados dissidentes, camponeses, funcionários, asseguravam a mão-de-obra necessária. A reputação externa do regime estava em causa.


Aumentou a coerção sobre os camponeses e todos os envolvidos na recolha de alimentos. Os incumpridores eram tratados como ladrões, presos, espancados, deportados ou fuzilados. Tudo pertencia ao Estado.


As novas quotas de produção eram incumpríveis. Quintas coletivas, quintas privadas, aldeias e cidades sofriam penalizações incomportáveis. Uma simples côdea, alguns grãos, tudo o que fosse comestível tinha que ser entregue às brigadas bolcheviques. Estas, por sua vez, também não escapavam à punição se não conseguiam obter as quotas que lhes tinham sido atribuídas.


Ao aumento de quotas correspondia mais fome e menos produção. Sem sementes nem forças, os camponeses vagueavam, andrajosos, famintos, ventres inchados, pelas ruas, pelas estações ferroviárias, suplicando por um pedaço de pão.


Metidos em viaturas eram despejados nos campos, longe das cidades, donde eram recolhidos e despejados, vivos e mortos, para valas ou ravinas.


Foram muitos os que conseguiram fugir para os países limítrofes, Polónia em especial, em tal quantidade que Estaline, com medo do impacto político, fechou fronteiras, proibiu a venda de bilhetes de comboio, colocou guardas nas estradas e instituiu um passaporte interno, sem o qual ninguém podia circular. Os camponeses ficavam prisioneiros nas suas terras onde morreriam por inanição.


Chegou a 1932, 1933, anos da Grande Fome, os anos do holodomor, que, durante muitos anos se escondeu do exterior e ainda hoje se tenta negar.


Estima-se que terão morrido à fome entre 4 a 5 milhões de pessoas na Ucrânia.


Só após 1984 Estaline aliviou o sofrimento dos camponeses, reduzindo as quotas e permitindo-lhes o uso de alguns alimentos .


A vida não voltou ao “normal”; nunca mais voltaria. Porém, lentamente, a Ucrânia parou de morrer à fome.”


Gareth Jones, jornalista galês, viajou pelo interior Rússia e da Ucrânia, falou com camponeses, ouviu as suas histórias, testemunhou o descalabro humanitário, denunciou-o em conferências de imprensa e, a custo, conseguiu ver publicados três artigos no Guardian, sob anonimato. A Ocidente, porém, por interesses políticos, económicos ou militares, ninguém deu crédito aos seus relatos.


No comboio, um comunista negou que existisse fome. Atirei uma côdea de pão do meu fornecimento pessoal para uma escarradeira. Um camponês que viajava na mesma carruagem foi buscá-la e devorou-a vorazmente. Atirei uma casca de laranja para a escarradeira e o camponês voltou a ir buscá-la e devorá-la.”


A liderança atual da Rússia conhece sobremaneira esta história. Tal como em 1932 quando Estaline disse a Kaganovich que perder a Ucrânia era a sua maior preocupação, o atual governo russo também acredita que uma Ucrânia soberana, democrática e estável, ligada ao resto da Europa por laços de cultura e comércio, constitui uma ameaça aos interesses dos líderes russos. Afinal, se a Ucrânia se tornar demasiado Europeia – se conseguir algo que se assemelhe a uma integração bem- sucedida no Ocidente - isso poderia dar azo a que os russos perguntassem, porque não nós?”


A fome e as suas consequências deixaram marcas terríveis. Porém, e embora as feridas permaneçam, milhões de ucranianos estão, pela primeira vez desde 1933, a tentar finalmente curá-las.”



Anne Applebaum

Peniche, 28 de Setembro de 2025

António Barreto


Créditos: Fome Vermelha - Anne Applebaum


sábado, 31 de maio de 2025

Perpétuos analfabetos

 

Perpétuos analfabetos



Tenho um certo desconforto, uma quase fobia, quando tenho que frequentar qualquer instituição pública: câmaras municipais, juntas de freguesia, finanças - ui! -, centros de saúde, hospitais, registos civil e predial, etc..


É algo que vem de longe. Recordo-me do alvoroço que havia lá por casa quando, pelos anos 50/60, se ia pagar a água na câmara municipal. Uma aflição. Pais fora, cada um na sua lide, um deles lá tinha que fazer um desvio no trajeto do regresso para fazer o pagamento.


Nesse tempo a maior parte da população adulta era analfabeta ou semianalfabeta - nos anos 40 e início dos 50 o ensino obrigatório era a 3ª classe. Gente rude, habituada à incerteza diária, sentiam-se intimidados quando entravam nesses locais. A medo, la perguntavam ao primeiro que lhes aparecia: - “Ah meu senhor, sabe-me dezer onde é que se paga aqui a áuga?” - o pescador, tirava de imediato o boné, em sinal de respeito, como fazia quando calhava ir à igreja. Se lhe pediam assinatura, era o cabo dos trabalhos; lentamente, meio trémulos, lá desenhavam o nome.


Era importante dar uma imagem apatetada para suscitar a indulgência dos zelosos funcionários. Homens que, diariamente enfrentavam a morte, tinham medo de entrar em locais públicos. O medo compulsivo do “papel selado”, traduzido na frase, que, por aqui e ali se ouvia aos supostos delatores: - “embrulho-te numa folha de papel selado que nunca mais tens conserto”.


Ah, mas hoje tudo mudou: democracia, simplificação dos serviços, edifícios modernos, tecnologia avançada, pessoal qualificado, cidadão alfabetizado, emancipado e dignificado. Enfim, um novo paradigma no relacionamento do cidadão com a administração.


tempos tive que me deslocar a uma repartição local para tratar de um assunto, por sinal, resultante dum lapso do respetivo organismo. Sistema de senhas, ajuda imediata a operar a maquineta, cadeiras disponíveis, ecrã com o número de vez. Fantástico! Um luxo!


No momento certo avancei para o respetivo balcão, disse ao que ia. Deram-me um papel e uma caneta. Preferi o portátil e fui para casa esgravatar no PC. Enviei a “redação” para o endereço indicado. Já está. Suspirei de alívio.


Desconfiado, o assunto era sério, voltei de tarde. Em boa hora. Senha, outro balcão, outra pessoa, explicação: - Está aqui, está aqui o seu mail. Eu posso fazer-lhe isso. Mas olhe que devia trazer isto numa pen. E o PDF é o número 5. E é preciso assinatura digital. - comecei a ficar com pele de galinha. -Estou feito ao bife”. -Pensei. - Você quer dado e arregaçado. Não. Para isto não é necessária a assinatura digital, basta o BI. - Renasci, dizendo em voz baixa, gracejando: o que posso fazer é pagar-lhe um cafezinho e pedir perdão a Deus na igreja mais próxima. -Olhe, há aqui uma bem perto!


Safei-me neste primeiro embate. A minha postura de uma certa humildade apalermada, ajudou. A pessoa do outro lado, no meio daquela complexidade, até foi compreensiva e colaborante.


Já disse que o assunto era complexo. Precisava de informações e fui pedi-las no dia seguinte. Chuva se Deus a dava. Estacionamento aí a 100 m do local. -”Agora é que é o “elas!””. - Pensei.


-”Afinal, quem é o senhor? Nós não sabemos quem é! Tem que ir a tal parte pedir uma certidão”. - Lá fui, não era muito longe. A pé. Chuva que era um “regalo”. Repartição cheia. Tirei a senha. - “Seja o que Deus quiser. Estou por tudo.” Uma pessoa a atender, ar cansado e resignado, tal como o público que aguardava a vez suspirando impaciente.



Aí uma hora depois, outra pessoa tratou do meu assunto, num ápice, murmurando -”Não há gente para atender, somos só nós”´. Entregou-me o tal papel a troco de cinco euros. - “Estou safo! Ala para a câmara”, - pensei. Fui, depois de aconselhar uma jovem aflita por uma certidão de uma mota, ou algo do género. E a chuva, fiel, à minha espera. Safou-me o carapuço do blusão.


Cheguei. -”Tem assinatura digital?”. -”Como? O que é isso?” -”Não lhe deram um papelinho quando tirou o cartão de cidadão?. Está lá o pin”. -”Acho que tenho qualquer coisa mas não sei onde está. E estou longe de casa”. Mas não basta a assinatura conforme o cartão de cidadão?”. -”Não! Sabe o que é um regulamento? Para este caso é necessária a assinatura digital!”


“Pronto, pensei que podia simplificar as coisas. Então onde arranjo isso?. -”Pode tratar disso em tal parte”. - Lá fui. Parte do trajeto de carro, parte a pé. Chuva sempre a cair. Eu encharcado que nem um pinto.


Lá chegado, o costume; senha e espera, boas instalações, bons assentos, gente resignada, minha vez. - “Veio em má altura, o sistema está a falhar”. - disse a pessoa que me atendeu, de meia-idade e ar cansado, forçando um sorriso que mais parecia um esgar. - Senti um calafrio; -”como raio vou saber se a altura é boa?”. - “Ah, está com sorte, já funciona”. - “Estou salvo!” - pensei, dizendo, ao que pretendia. Após breve explicação: - “Já está. A chave móvel está ativada, agora já pode assinar com o pin”. - “O pin? - “Sim, aquele que vem com o cartão de cidadão!”. - “Não sei onde está. Estou longe de casa”. -”Espere aqui e vá àquele guiché logo que esteja livre”. Esperei, esperei, entrei à má fila, temendo uma repreensão.


Expliquei-me ante a pessoa, com ar cansado e cordial, que me atendeu. Mais um relambório e...-”diga-me quatro números. - Respondi, sem perceber bem. Era o pin, o famoso pin. -”E este aqui é puk. Não o perca nem dê o pin a ninguém! Olhe que os funcionários costumam pedi-lo. Não pode pedir isto muitas vezes, se o fizer é-lhe cancelado o cartão de cidadão!”. - Chiça! - murmurei.


Fiz a viagem de regresso, parte a pé, parte de carro, chuvinha sempre a cair e eu a escorrer.


”- Cá estou”. - Disse triunfante após o pequeno calvário dos preliminares, entregando os papeis a quem me atendia. Este digitou no PC passou-me um aparelho com teclas e números. -”Ponha aí o código”. - Teclei o pin. -”Não está a dar”. - Fiquei gelado!. -”Dê cá, qual é o pin?”. - Lembrei-me da recomendação de há pouco. -”Quero lá saber”. - Disse-lhe o pin. -” Já deu. Já está!”. -”Aleluia! Boa tarde e obrigado”. Ala para casa.


Acreditem que sei ler, escrever e contar, leio uns livrecos, esgatanho umas guitarradas e, perante este labirinto kafkiano senti-me um analfabeto. Se usasse boné, tinha-o tirado respeitosamente afivelando um ar amedrontado.


Muita coisa mudou, na Administração e nos cidadãos, mas a distância entre ambos permanece imutável. E assim continuará.

                                                                        Edvard Munch


Peniche, 31 de maio de 2025

António Barreto


sábado, 17 de maio de 2025

Nos Mares do Fim do Mundo

 

Nos Mares do Fim do Mundo

Bernardo Santareno


- Era de Ílhavo, sr doutor. Uma peste, uma praga de Deus! Aquilo na era home, era o próprio diabo!…


Tantos e tão cruéis agravos fez, que um dia, durante uma das suas últimas viagens, a tripulação revoltou-se. E tendo-o amarrado de pés e mãos, prestes a baldeá-lo, mantinham-no deitado e seguro sobre a amurada do navio: Hesitavam…

Logo o velho capitão num golpe de audácia:


- Vamos rapazes: Assim não estou bem, doem-me as costas. Resolvam: borda fora p’ró mar; ou então, depressa p’ra dentro!…


Surpreendidos e dominados pela coragem do velho, os homens abrandaram: e puseram-no dentro.

Uma vez em terra nenhum fugiu ao castigo do terrível capitão: um a um desgraçou-os a todos, inexoravelmente.


Adélia Maria

Peniche, 17 de maio de 2025

António Barreto

segunda-feira, 7 de abril de 2025

MESTRE MANTANA

 

MANTANA


Esteta, sonhador, professor, exímio contador de histórias, fadista e cantor lírico de ocasião, perscrutador de almas, Mestre Mantana, adorava Buarcos e suas gentes, que imortalizou nos seus, bem conhecidos trabalhos de cerâmica.


Marcou a paisagem urbana da vila com inúmeros projetos onde a alegria proporcionada pelo equilíbrio, terraços, varandas, janelas e cores denuncia o seu carácter extrovertido, a sua visão universalista da vida.


Mestre de Trabalhos Manuais da Escola Secundária da FF onde se distinguiu pela imaginação e perícia encantadoras, sabia ser humilde, homem de carácter sabia reconhecer o mérito alheio; disse-me um dia, era eu um rapazote: - “Barreto, quando fui para a Escola pensei que era o melhor de todos, mas enganei-me, Fulano é ainda melhor que eu”. Admirável.


Pelos idos de 60 tinha uma escolinha num anexo em casa de seus pais, na Praia, ali para os lados das freirinhas. Não sei como, os meus pais lembraram-se de me pôr lá, quando eu, no 1º ano, “navegava” entre medíocres, sofríveis e suficientes, orgulhoso de pertencer à “pior turma da escola”, a turma dos “buarqueiros”, como anunciara, eufórico, com um sorriso de orelha a orelha, o meu querido amigo João da Susana (salvo-o-erro), suscitando reação exultante de todos, por sermos especiais em alguma coisa.


Distribuía-nos tarefas, ia fazer as suas coisas e voltava mais tarde para ver os resultados e corrigi-los. Mandava-nos estudar um tema e fazia sabatinas, para ver quem respondia melhor. Volta e meia íamos todos jogar à bola para a praia. Ele jogava connosco. E jogava bem, à Simões. Era do Benfica, amava o Benfica. De vez em quando mostrava-nos aguarelas de sua autoria, que eu adorava.


Um belo dia, todos reunidos lá no quintal soalheiro, o Mestre Mantana, começou a dissertar sobre cada um de nós. E todos, todos sem excepção, tínhamos qualidades; uns assim, outros assado, mas todos éramos notáveis em alguma coisa. Admirável. Inesquecível. É das coisas mais bonitas que recordo dele; coração generoso, por uma ou outra razão, real ou imaginária, fez-nos acreditar em nós próprios.


Devo-lhe isso, que não é pouco; com surpresa comecei a perceber que tinha qualidades: -” Eh pá” - dizia nas sabatinas, perante todos: -” O Barreto sabe vírgulas e tudo!”. - Aquilo galvanizou-me para o resto da vida e ainda hoje me comovo e sinto grato ao Mestre Mantana.


Era nosso amigo. Éramos amigos.


Histórias da vida local e anedotas sabia “milhentas”, que, com o seu entusiasmo e espontaneidade, tornava hilariantes, fascinantes por vezes, Adorava ouvi-lo, fosse a contar a história da “velhinha que matara o filho com sete chapeladas”, ou as peripécias de buarqueiros castiços, alguns deles meus familiares, ou a cantar o “Solo Mio”.


Estar com os outros, conviver com os outros era a sua vocação profunda.


Obrigado querido Mestre Mantana, Deus há-de estar contente a ouvi-lo cantar a “Canção do Cigano”,


Barreto

Peniche, 7 de Abril de 2025


sábado, 22 de março de 2025

José António Saraiva e Salazar

 

José António Saraiva

e

Salazar


Invulgarmente culto, sereno, cartesiano, preciso, sem rodeios, subterfúgios nem hipérboles, José António Saraiva dissecava com eficácia as matérias de que se ocupava.


Ao saber do seu falecimentoolhei à minha voltaDois passos. Quase em frente um dos seus livros sobre Salazar: “A Queda de Uma Cadeira Que Não Existia”. Terminei agora a leitura. Gostei.


O título é o objeto. Desconfiou da tese corrente, segundo a qual Salazar morrera em consequência dos ferimentos na cabeça devido à queda duma cadeira, no terraço do Forte de Santo António, no Estoril. Preparava-se para ler o jornal frente ao oceanoTal cadeira nunca apareceu e a descrição que dela foi feita - cadeira de realizador de cinema -, não condizia com a das fotos usada habitualmente.


Investigou e comparou os testemunhos das pessoas próximas, na ocasião; a governanta, o barbeiro, o massagista, o enfermeiro, o médico pessoal, outrasDescobriu indícios de acidente ocorrido na residência oficial de São Bento umas semanas antes. Durante o banho de imersão, Salazar terá caído e batido violentamente com a cabeça no rebordo da mesma.


Ocultando o facto, por o considerarem impróprio, indício de degenerescência física do ditador, e ultrapassável, a poderosa governanta, Maria da Luz, terá inventado a história da cadeira, aparentemente menos polémica. E é verdade que há demasiadas contradições nos testemunhos.


Eduardo Coelho, médico pessoal de Salazar, diagnosticou hematoma subdural. Vasconcellos Marques, anti-Salazarista convicto, subscritor do MUD nas eleições de 1949, ex-pugilista e o melhor cirurgião neurológico da época, discordou, considerou tratar-se de um AVC. Discutem.


Maria da Luz tem medo. Não quer um médico da oposição. Contra vontade, Vasconcellos e a sua equipa operam Salazar após discussão com Eduardo Coelho. Confirmou-se o hematoma. Acreditou-se na recuperação. Que aconteceuSalazar estava curado, pensaram. Preparou-se a alta.


Fevereiro,16, 13 30, depois do almoço. “Estou muito aflito. Ai meu Jesus”, exclamou Salazar, caindo inanimado sobre a poltrona. É um AVC no hemisfério direito - o hematoma fora no hemisfério esquerdo -,Vasconcellos, egoistamente, suspira de alívio; a sua reputação estava salva Era o fim.


Tom Gallagher, no seu livro, “Salazar, o Ditador que se Recusa a Morrer”, refere que, a certa altura do seu internamento, Salazar terá murmurado algo como: “E agora, para onde me irão enviar? Não tenho para onde ir”.


Filho de caseiro, seminarista, Salazar encarou a seu envolvimento na esfera pública como uma missão divina para salvar Portugal. Recusou casar-se com a Carolina Asseca, viscondessa de Asseca e condessa de Anadia, para se dedicar inteiramente ao governo do país.


Não era misógino, discretamente, tinha os seus encontros femininos, mas foi Christine Garnier a sua autêntica paixão, por sinal, correspondida. O marido desta divorciou-se ao ler a correspondência entre eles. Os passeios pela quinta do célebre duque de Palmela, as visitas ao convento que lá se encontra, parecem revelar envolvimento íntimo.


Por ocasião da II GM Salazar foi um gigante ao opor-se às pretensões de Churchill e Roosvelt de ocupação militar dos Açores. O estatuto de neutralidade assim o exigia. Terá respondido ao americano que, em caso de ataque, Portugal defenderia os Açores com todas as suas forças.


Sobre o fim da venda de volfrâmio aos alemães, exigido pela Inglaterra, o homem de Santa Comba, nunca cedeu. Defendia, disse, os muitos milhares de portugueses que dependiam disso. Aceitou, sim, fornecê-lo igualmente ao velho aliado. E quando o desfecho da guerra se avizinhou, deixou de fornecer ambos.


Com a diplomacia ágil de Pedro Teotónio Pereira convenceu Franco a optar pela neutralidade de Espanha evitando uma nova frente de combate aos aliados, e a, mais que certa, invasão de Portugal.


Considerou que a derrota da Alemanha e da Itália, tal como ocorreu, tornaria inevitável o avanço do comunismo na Europa. Algo que não entendi bem.


Dele disse Thomaz Jefferson “Embora V.V. não sejam um regime democrático como nós o concebemos, as vossas relações connosco são excelentes e ninguém hoje vos ataca porque o Dr Salazar com o agudo sentido das realidades que sempre tem revelado, veio manobrando com tal habilidade política que não há hoje, internacionalmente, a menor reserva para com Portugal.


Pio XII: Abençou-o-o, Salazar de todo o meu coração e faço os mais ardentes votos para que possa levar a bom termo a obra de restauração nacional tanto material como espiritual.”


Eisenhower: “De todos os estadistas europeus com quem conversei Salazar parece-me o mais lúcido e avisado.”


Dean Acheson: “Não restam dúvidas de que se trata do governo de um só homem, e que não há lá outro homem como ele. O mais provével é que, se Salazar morrer, ou perder os seus poderes, Portugal volte à confusão de onde o arrancou.”


Robert Schumann: “Salazar não é apenas um exemplo, é uma fonte de inspiração.”


Marcello Mathias: “Gulkbenkian considerava Salazar um “homem genial” e todos os anos lhe enviava cheques de cem ou duzentos contos para ajudar os pobres.”


No final da guerra Salazar estava exausto, profundamente deprimido, disposto a abandonar o cargo. Os seus apoiantes, ou dependentes políticos, com Marcello Caetano à cabeça, não deixaram. Christine Garnier, tirou-o da profunda depressão em que encontrava.


Marcaram-se eleições, constituiu-se o MUD (Movimento de Unidade Democrática), que desistiu. Ganhou a UN (União Nacional). Carmona foi reeleito, vindo a falecer dois anos depois.

Porém, tirei uma dúvida; Salazar era, ou não fascista?


Acreditava na hierarquia de capacidades, de competências, e isso não é consentâneo com o conceito de igualdade prevalecente nas democracias atuais. Não era um democrata. O falhanço do liberalismo do século anterior, dissuadira-o das virtudes desse regime político.


É verdade que Salazar não cultivava comportamentos públicos característicos dos fascistas do século XX; o culto da personalidade, a participação nos grandes públicas, nas grandes paradas militares, as obras de fachada, discreto, deixava as inaugurações para os outros enquanto estudava novos projetos.


Enfim, inteligente, brilhante, culto, corajoso, não era um monarca mas agia como os do Antigo Regime; era um discreto absolutista, capaz de ser tolerante mas não admitia dissidência.


E era fascista, sim. Sem exuberância, mas era fascista.


Segundo Paulo Otero, o fascismo caracteriza-se pela subordinação dos direitos individuais aos interesses do Estado. E era esse um dos pilares do Salazarismo. Os interesses do Estado eram definidos pelo partido do regime, a UN (União Nacional).


Curiosamente, a recente crise da covide, impôs aos cidadãos os interesses do Estado definidos pelo partido que sustentava o Governo de então.

                                                                               



Peniche, 22 de Março de 2025

António Barreto