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domingo, 15 de janeiro de 2017

Mário Soares, o Personagem, o Político e o Homem


 
Claude Monet - La route de Vétheuil, 1880

   Desde há largos anos que percebi que Mário Soares não era defensor da liberdade, nem patriota e nem sempre amigo do seu amigo. O "campeão da Liberdade", o "pai da Democracia", o "patriota", o "amigo inflexível de todas as horas" foram atributos de um personagem ficcionado por ele próprio, pelo seu partido e pela generalidade da comunicação social, na sequência do golpe do 25 de Abril de 1974. Para tal conclusão basta captar o essencial de alguns episódios marcantes de uma história política com cerca de 50 anos. 

   Desde logo, a imposição de uma ideologia política, “o caminho irreversível para o socialismo”, consagrado constitucionalmente em 1976 com a colaboração do Partido Socialista que se apresentava em maioria na Assembleia Constituinte, revela que o conceito de Liberdade de Mário Soares e do seu partido, se restringia à sua liberdade de impor aos outros a sua ideologia, propósito que lhe era negado pelo antigo regime. Tal facto, por si só, é suficiente para descredibilizar o regime instituído enquanto Democracia autêntica, bem como todos os alegados “democratas” que o impuseram, entre os quais, e mais que qualquer outro, Mário Soares, pela omissão de oposição, apesar do enorme prestígio de que gozava, na época, junto da população e da generalidade da Comunicação Social.

   O processo da desastrosa descolonização imposta pelas grandes potências do pós guerra incluindo dos países agora “nossos amigos” no âmbito da União Europeia, permanecerá como uma mancha negra indelével da sua atividade política. Apesar da partilha de responsabilidades, Mário Soares foi cúmplice nesse processo de que resultou dezenas de milhares de mortos, centenas de milhar de desalojados, milhões de africanos subjugados pelos novos opressores e de que nunca se arrependeu apesar do estado de miséria dos respetivos povos. O conceito de Liberdade de Mário Soares, neste caso, cingiu-se às elites dos partidos envolvidos na guerra colonial de matriz socialista e não ao Povo correspondente, no afã de agradar aos novos senhores do mundo que lhe proporcionavam a ascensão ao poder em Portugal. Nem libertador nem Patriota. Mário Soares foi um ás da sobrevivência política, de ética e altruísmo duvidosos.

   Também lhe tem sido, consensualmente imputado, o crédito da adesão de Portugal à CEE, enquanto opção estrategicamente decisiva para a estabilidade política e o progresso económico do país. Não o vejo assim. Antes de mais, as negociações com a CEE tinham sido estabelecidas por Marcelo Caetano, na sequência do 2º Pacto Colonial, que definia o objetivo comum de desenvolvimento da economia Portuguesa e em especial das Colónias com o propósito de a preparar para a liberalização. Por outro lado, a adesão, implicitamente, constituiu a capitulação de uma nação que, em mais de oito séculos, travou, com todas as vicissitudes conhecidas, as mais bravas batalhas em todos os continentes, algumas simultâneas, por vezes contra inimigos mais poderosos, então sim, compelida pela ânsia de Liberdade, de resto, fundadora da Nação, pela mão e pelo génio de Afonso Henriques. Com a adesão à CEE e mais tarde à UE com a anuência de Mário Soares e, mais uma vez, pela mão do PS, Portugal alienou os principais fatores que caracterizam um país livre; emissão de moeda, política cambial, pautas alfandegárias e política macroeconómica. As duas intervenções do FMI, em 1977 e 1983, no financiamento do Governo após o desbaratamento das reservas herdadas do Antigo Regime, revelaram a incapacidade de sobrevivência da III República sem apoio externo. Foi então que se verificou o período de ouro da economia portuguesa do atual regime, de 1986 e 1992, graças, essencialmente, aos fundos europeus. Mais revelou covardia política na medida em que tal visava, também, comprometer os parceiros europeus na salvaguarda de eventuais riscos de nova deriva comunista interna. Tal não é compaginável com os atributos de coragem política, de amor à liberdade e de patriotismo com que Mário Soares foi consagrado pelos seus correligionários.

   Relativamente à sua lendária lealdade aos amigos, recordo os casos de Henrique Galvão, Salgado Zenha, Rui Mateus, Edmundo Pedro e de José Sócrates.

   Henrique Galvão, sim, foi um herói rocambolesco cuja história tem sido ignorada, apesar do seu pioneirismo na luta contra o regime de Salazar, que enfrentou de peito aberto, sem apoios e com destemor, acusando frontalmente o regime, num discurso histórico que proferiu na Assembleia Nacional, pelas atrocidades cometidas contra os negros das colónias. Valeu-lhe, mais tarde a prisão no forte de Peniche e toda uma história fascinante que encheria os écrans caso tivesse acontecido noutras paragens. Morreu no Rio de Janeiro, na miséria, apesar da caridade do país irmão. No leito de morte, teve um visitante político nacional. Um só. Mário Soares! Confesso que é comovente. Mas, em 42 anos de democracia, Mário Soares não foi capaz de enaltecer publicamente o contributo remoto de Galvão, “o inventor” de Humberto Delgado na luta contra o regime autoritário de Salazar. Por uma razão; Henrique Galvão, sendo democrata, era anticomunista e iberista. E Mário Soares queria todos os louros da luta “antifascista”. Falhou a lealdade à memória do principal precursor do 25 de Abril.

   Quanto a Salgado Zenha, cofundador do PS e figura destacada na afirmação política deste partido, sofreu as consequências da oposição e da ira de Mário Soares, quando percebeu, denunciou e combateu a tentativa de infiltração comunista no partido através do MES de Manuel Serra. Apesar da vitória interna, Salgado Zenha acabou isolado e votado ao ostracismo político na sequência da sua derrota eleitoral às presidenciais. Mário Soares foi fiel aos amigos subservientes; que não punham em causa a sua liderança e autoridade. Afinal, a luta de Zenha, apenas retardou a vitória dos radicais que ascenderam ao poder pela mão de António Costa sem que se conheça qualquer oposição da parte do “pai da democracia”. Este, nunca hesitou em trucidar politicamente os amigos que o desafiavam.

   O caso Rui Mateus é, talvez, o mais emblemático de todos. Fundador da primeira hora, Rui Mateus garantiu, por vários anos, o financiamento do PS e a difusão externa do partido, graças aos conhecimentos que adquiriu na sua estadia no Reino Unido, na Suécia e nos Estados Unidos. Mário Soares permitiu que Rui Mateus fosse brutalmente sacrificado, destruído politicamente e pessoalmente, na sequência do caso Emáudio, do qual constituía a origem. Mais importante que salvar o amigo foi salvar-se a si próprio e ao partido. Sem dó nem piedade.

   Edmundo Pedro, o honrado, corajoso e leal Edmundo Pedro, que penou nas masmorras do Tarrafal as agruras da oposição ao regime de Salazar, “malhou” mais uma vez nos calabouços, agora do regime “democrático”, na sequência do caricato episodio das armas distribuídas ao PS por um subordinado de Ramalho Eanes por ordem deste, nos dias que antecederam os conflitos do 25 de Novembro de 1975. Edmundo Pedro, apesar de inocente, suportou silenciosamente o desconforto e opróbrio da cadeia “democrática” sem que Mário Soares, Manuel Alegre, companheiro do episódio, ou outro “camarada” o ilibassem do ilícito, como era de justiça. Mais uma vez, a amizade foi sacrificada ao partido e seus dirigentes.

   E o que dizer do incansável apoio de Mário Soares a José Sócrates até ao último momento? José António Saraiva referiu o seu recente livro “Eu e os Políticos” a respeito deste que “todos na esfera política e jornalística conheciam a sua compulsiva tendência para a mentira. Como foi possível a Mário Soares apoiá-lo apesar disso e do estado caótico das finanças públicas escondidas do grande público mas não ignoradas pelos mais próximos e que haveriam de conduzir o país à vergonha da exiguidade política e da indigência financeira? Fica bem confortar um amigo caído em desgraça, exceto quando, este, em nome do partido, conduziu o país à pré-insolvência, sacrificando os cidadãos, e é arguido de ilícitos graves cometidos durante o exercício dos mais altos cargos públicos. A pátria de Mário Soares nunca foi Portugal, mas o Partido Socialista, ao qual tudo e todos sacrificou quando entendeu necessário.

   Filho duma relação amorosa ilícita dum prelado com uma paroquiana, Mário Soares, foi um instrumento político de seu pai contra a igreja - que o excomungou - e contra o regime de Salazar - que o ostracizou - tal como o famoso Colégio Moderno, alfobre de socialistas e comunistas, entre os quais o célebre Álvaro Cunhal. Menino mimado, Soares nunca conheceu as agruras da luta pela subsistência material beneficiando do apoio paterno, do apoio do empresário português Manuel Bollosa quando no exílio em Paris, mais tarde, dos donativos dos países amigos ao Partido Socialista e, finalmente, do erário público seja pela remuneração das funções públicas que exerceu, seja pelos sucessivos financiamentos públicos e privados da sua fundação.

   Posto isto, a seu crédito releva a extraordinária sagacidade e coragem política que o caracterizou no combate ao regime de Salazar e a determinação na oposição à agenda totalitária do Partido Comunista, embora por causas meramente partidárias e apesar de nunca ter conseguido desenvencilhar-se da “chantagem política” que este partido exerceu sobre o PS que, finalmente, deu frutos em 2016, o ano da sua “partida”.

  Que tenha “partido” em paz consigo e com os seus são os meus votos, apesar de tudo.

Peniche 15 de Janeiro de 2017       

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