As "Irmãs da Caridade" (II)
O triunfo dos radicais durou pouco. Logo no dia seguinte sai um decreto-lei com a criação de uma comissão para estudar a reorganização do “Instituto das Irmãs da Caridade”. Tranquilizou-se a condessa de Rio Maior, atribuindo ao anticlericalismo de Estado a causa dos protestos, não deixando de considerar insensato o recurso das irmãs vicentinas à intervenção diplomática francesa. Enganou-se. Na sequência do novo comício realizado a 10 de Março pelos radicais, em que a multidão se dirigiu a casa do caudilho Duque de Saldanha, decidiu-se D. Pedro V pela dissolução do Parlamento, marcando eleições para 28 de Abril. Porém, nada mudou; estas, como de costume, foram ganhas pelo partido do poder o Histórico, voltando o Duque de Saldanha à Presidência do Conselho.
Ato contínuo, a condessa de Rio Maior ameaçou demitir-se da Direção do Asilo da Ajuda caso as freiras fossem forçadas a deixar Portugal. Levantou, então, uma questão ainda hoje atual: a de que a supressão da vertente moral e religiosa do ensino violava o direito fundamental da liberdade religiosa e que tal decorria da imposição da obrigatoriedade do ensino que, na prática, se traduzia no monopólio do Estado.
Em 1862, o Duque de Loulé, incapaz de obrigar as freiras a cumprir a lei sobre instrução que fizera publicar em Março pela mão de Braancamp, negociou com o governo francês a sua retirada de Portugal. Quando, em Maio, enviado por Napoleão III, chegou ao Tejo um navio para levar as freiras, as aristocratas que dirigiam os asilos da Ajuda, de Benfica e de Jesus - albergando um total de setecentas crianças -, demitiram-se de imediato dos respetivos cargos.
É então que se revela outro tema fulcral e atual; a filantropia proporciona popularidade e poder a quem a pratica. Os Governos da Monarquia Constitucional consideravam-se donos dos pobres! Em consequência, foram mandados encerrar os orfanatos em Santa Marta, nos Cardeais, em Benfica, em Viana do Alentejo e em São Fiel. Centenas de jovens foram abandonados, para desconsolo da Condessa de Rio Maior, que culpou os padres portugueses de apatia, subserviência e ignorância, em contraste com os congéneres franceses, que considerava cultos, combativos e determinados.
O que estava em causa era de saber a quem competia a responsabilidade da ajuda aos pobres, se ao Governo se à Sociedade Civil. Para a condessa, era a esta. Quanto ao Governo, considerava que não devia meter-se num fenómeno que classificava natural. À época, já algumas cidades europeias contavam com empresas de apoio aos pobres, de natureza jurídica mista.
Derrotado o projeto da condessa de Rio Maior, o seu legado foi, de alguma forma, continuado pela sua nora, Maria Isabel, marquesa de Rio Maior, e por Maria Luísa, duquesa de Palmela, que fundaram em Lisboa a Sociedade Promotora das Cozinha Económicas. Esta sociedade, financiada pelas respetivas promotoras e por muitas das suas amigas, teve ainda a colaboração das freiras francesas. Constituída por uma rede de instituições, servia refeições a preços módicos. Desta vez, ninguém pareceu incomodar-se com o contributo das irmãs.
A primeira cozinha económica foi inaugurada nos Prazeres em 8 de Dezembro de 1893. Seguiram-se a dos Anjos, a de Alcântara, a de Xabregas, a de São Mamede, a de São Bento e a da Sé. Nos jardins do Palácio de Palmela também se serviam refeições, 500 por dia! Por 90 reis comia-se uma tijela de sopa de grão com arroz, bacalhau guisado, 200 gramas de pão e 2,5 decilitros de vinho. O rei D Carlos doava parte do produto das suas caçadas em Mafra e em Vila Viçosa, e as pescarias do iate real “Amélia”. Mais tarde, em 1918, o povo deu a estas cozinhas o nome de “Sopa do Sidónio”, como ficaram conhecidas.
A duquesa de Palmela faleceu nas vésperas da Revolução Republicana. Quanto à Marquesa de Rio Maior, apesar do otimismo inicial, acabou por abandonar o país em 1911, tendo regressado em 1918.
Se é certo que a aristocracia, à exceção de uns atos isolados - um peditório, umas esmolas, uns enxovais - não tinha o hábito da filantropia, nem considerava seu dever ajudar os pobres, também é verdade que o Estado que saiu do novo regime, depois de confiscar os bens dos conventos, foi incapaz de os substituir no apoio social e educativo.
Sem a caridade dos ricos, sem um Estado eficaz e com uma Igreja enfraquecida, os pobres ficaram entregues à sua sorte.
Esta disputa projetou-se até aos nossos dias. Quando no poder, a direita aprofunda o papel das misericórdias no apoio social e hospitalar e incentiva o ensino privado, criando parcerias e contratos de associação. A esquerda trata de fazer o contrário logo que pode. O atual Governo, apoiado pela “geringonça”, logo que iniciou a vigência, tratou de revogar ou não prolongar os contratos de associação com as escolas privadas, tendo feito o mesmo com os hospitais públicos de gestão privada, apesar do histórico de bons resultados. A ponto de, no caso da calamidade resultante da atual pandemia, insistir em deixar de lado os hospitais privados com prejuízo de toda a população.
Também em democracia, por vezes, o Estado, subjugado pelas disputas partidárias, é inimigo dos cidadãos que era suposto servir.
Fonte: "Os Pobres" de Maria Filomena Mónica
As Pupilas do Sr Reitor - Alfredo Roque Gameiro
Peniche, 4 de Abril de 2021
António Barreto
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