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sábado, 27 de fevereiro de 2021

Fogo no "Vera Cruz"

 

   “Barreto! Há fogo na Casa das Caldeiras” Chamou o Airoso batendo vigorosamente na porta do camarote. “Foda-se!” Murmurei levantando-me dum salto, enfiando, num ápice, o fato de macaco e dirigindo-me em passo de corrida para a Casa das Caldeiras, cerca de seis pisos abaixo, onde já se encontravam os meus colegas, de serviço; o Airoso e o Adalberto.

   O navio tinha a saída marcada, com destino a Kaoshiung - a sua derradeira viagem - para as doze horas do dia seguinte. Seria o princípio do fim da frota mercante nacional. Tinha estado de serviço no dia anterior e decidira ficar a bordo, dada a escassez de tempo para ir a casa e voltar. Acabara de me deitar, seriam cerca de nove horas quando ocorreu este incidente.

   Pelo caminho, descendo apressadamente as escadas metálicas, imaginava a Casa das Caldeiras em labaredas, o risco de explosão do combustível - os tanques estavam cheios de nafta - e o navio a afundar-se, ali mesmo, no cais de Alcântara. O “Vera Cruz” morreria em Lisboa, numa explosão de raiva, recusando o destino infame de Kaoshiung, onde seria mutilado, esventrado e reduzido a sucata. Fosse como fosse, embora de folga, estaria com os meus colegas.

   Quando cheguei à Casa das Caldeiras não vi chamas em lado nenhum! “Foda-se!” Disse para mim, respirando de alívio. “Estes caralhos estão a gozar comigo!” Porém, vi que o Adalberto, secundado pelo Airoso, olhava atentamente para o visor da câmara de combustão da caldeira de bombordo-vante - o Vera Cruz, tal como o Santa Maria, tinha seis caldeiras, três de vante e três de ré, simétricas, cuja pressão de regime, salvo-o-erro, era da ordem dos 38 bar.

   “Eh pá, a fornalha está demasiado ativa! Já fechei o combustível e parece que a chama ainda aumentou de intensidade!” Disse o Adalberto, espreitando a fornalha. “Deve estar a queimar combustível derramado, por deficiência do injetor ou insuficiente temperatura do combustível.” Disse eu. “Foi o que pensámos, mas não dá sinais de abrandar!” Verificámos que a pressão de vapor estava abaixo da pressão de regime e resolvemos aguardar na espetativa de que a fornalha se apagasse. Por essa altura, a caldeira auxiliar, “a caldeirinha” - a caldeira assassina - já tinha sido desativada.

   Passados cerca de trinta a quarenta e cinco minutos, a combustão não dava sinais de abrandar e a pressão de vapor atingira o valor de regime. O Airoso subiu, pela escadaria, ao topo da caldeira e gritou; “ As chapas estão demasiado quentes! Estão ao rubro e a pressão continua a subir!”. Percebemos então o que se passava. A fuligem acumulada nos tubulares e invólucro tinha inflamado e devia ser em grande quantidade. Com a válvula de segurança prestes a “disparar” - creio mesmo que chegou a disparar - tínhamos que agir.

   Depois do Adalberto despejar os extintores de espuma química na fornalha, sem que se tivesse registado qualquer redução da intensidade da combustão, já com labaredas a trepar pela antepara de vante, resolvemos agir com a única solução disponível; combater as chamas e arrefecer a superfície externa superior da caldeira, com água do mar. Organizámo-nos num ápice.

   O Airoso foi à Casa da Máquina lançar o diesel-gerador, ligá-lo ao quadro e desativar o turbogerador, então em serviço, para não nos faltar energia elétrica. O Adalberto lançou a bomba de serviço-geral e comunicou-a com o coletor de incêndios. Eu desenrolei a mangueira de incêndios e dirigi-me com ela à zona da antepara, onde comecei a combater as chamas em rápida progressão, consciente dos “trinta e um” que iríamos ter na viagem, com os curto-circuitos, se nos safássemos. Regressando da Casa das Máquinas, o Airoso desligou os circuitos elétricos dispensáveis e, desenrolando a outra mangueira, “atacou” a envolvente superior da caldeira.

   Entretanto, o piloto Teles, que estava de serviço e tinha sido avisado pelos Airoso e Adalberto, contactara os bombeiros. Enquanto combatia as chamas, deixei de ver os fogueiros, que, de início, estiveram connosco. Soube mais tarde que tinham feito as malas e aguardavam, junto ao portaló, o desfecho do episódio. Entretanto, o Adalberto desencantou uma mangueira de incêndios, não sei onde, e atacou as chamas, que se propagavam, também na antepara de vante, mas ao nível do piso inferior.

   E assim estivemos, cada um no seu posto, na dúvida quanto ao desfecho. Foi então que, suavemente, dentro de mim, brotou um sentimento: tive orgulho nos meus colegas. Ninguém arredou pé, nem se desorientou; solidários, concentrados e estoicos! A certa altura, umas duas horas e meia a três horas depois, gritou o Airoso de bombordo, “a chapa arrefeceu…a pressão deixou de subir…está a baixar”. “Estamos safos”, pensei - receáva que a caldeira explodisse por falta de débito da válvula de segurança que, entretanto, tinha “disparado”. Logo depois voltou a gritar o Airoso: “A chama apagou-se!”. Respirei de alívio. Já não tinha dúvidas: estávamos safos.

   Continuámos até extinguir as últimas labaredas que ainda “lambiam” a antepara, até, por fim, pousarmos as mangueiras. Estava junto à porta de acesso e ouvi-a a abrir-se. Era um bombeiro que se preparava para entrar e, ao ver o cenário, recuou um passo. Entretanto, o Airoso veio ter comigo, estava eu a estibordo, já no piso superior da escadaria, onde acabara de apagar os últimos focos. Quase não o reconheci! Estava preto da cabeça aos pés! Tal como o Adalberto, que chegou pouco depois. Percebi então o susto do bombeiro; aquele era também o meu estado.

   Além dos bombeiros, já desnecessários, chegaram o Chefe de Máquinas - cujo nome não recordo, mas que alguém alcunhara de “Porfírio Rubirosa” e se mostrara estupefacto -, o Comandante Manaças - o Herr Manaças, como era conhecido - e os jornalistas. Logo ali, o Comandante anunciou a manutenção da hora de saída para o dia seguinte à hora marcada.

   E assim foi. O “Vera Cruz” saiu para a sua derradeira e memorável viagem com uma caldeira desativada. Uma viagem inesquecível, rica em peripécias, à qual se seguiu a do “Santa Maria”, do “Pátria”, do “Império”, etc. Todos com o mesmo destino: a sucata. Os símbolos do Estado Novo e do Império foram erradicados. Desta forma inglória se pôs fim a uma das maiores e mais bonitas frotas mercantes do mundo. O “país de marinheiros, de naus, de esquadras e de frotas” cantado por António Nobre, morreria em 1975, em pleno PREC.

Peniche, 27 de Fevereiro de 2021

António Barreto

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