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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Humberto Delgado, O Mártir Socialista (notas, P6)


Humberto Delgado, O Mártir Socialista

(Considerações com base nos livros; O Inimigo Nº 1 de Salazar de Paulo Jorge Castro; Acuso!, de Henrique Cerqueira; A Tirania Portuguesa, de Iva Delgado e outros)
  
  
Quer no trajeto de Galvão quer no de Delgado há uma vertente quixotesca resultante de um exacerbado conceito que ambos tinham de si próprios e que, frequentemente, vinha à tona. Ambos tinham uma tremenda sede de glória e poder e relativizavam a importância das vítimas. Ressalve-se que, no caso da Santa Maria, as ordens emanadas de Galvão e Velo, foram de que não houvesse vítimas. Apesar disso, Henrique Galvão esteve prestes a ser assassinado pelos seus pares espanhóis por, alegadamente, ter negligenciado o combinado ao negociar com o exterior sem os consultar previamente. Foi poupado para evitar a descredibilização pública da organização e a tipificação do sequestro como ato de pirataria tipificado pelo Direito Internacional Marítimo vigente.

   Avaliação de Galvão a Mortágua: “Camilo – Chefe do Grupo: Decisões e bravura pessoal. Manifestou sempre vontade inquebrantável quanto à realização da operação, sendo neste capítulo o mais regularmente firme. Sujeito a desânimos transitórios perante as dificuldades da preparação. Imaginação viva mas mal informada. Precipitado e pouco reflexivo. Não pode ainda ser-lhe confiada uma ação importante. Pouco previdente quanto às consequências das suas decisões, portanto, imprudente. Politicamente, em formação - Sentimental nos ideais.”

   Proclamação aos portugueses, de Miguel Urbano Rodrigues - jornalista que embarcara no paquete Santa Maria em alto mar, a partir de uma traineira -, “Os nossos lemas serão: a terra para os que nela trabalham e a casa para os que nela vivem. Liquidaremos o latifúndio como liquidaremos a especulação imobiliária”. Um lema que se mantém vivo e em marcha nos dias de hoje pela via reformista encetada pelos “herdeiros” políticos de Humberto Delgado.

   John Kennedy era o presidente americano em exercício. Pressionado para deter o navio português e prender os assaltantes, Kennedy, como “bom” democrata, através do Departamento de Defesa, do seu governo, acabaria por classificar o sequestro como um ato político em obediência a um governo no exílio, personificado pelo general Humberto Delgado. Uma viragem do posicionamento político dos EUA que acabaria com o suporte político da ONU ao governo de Salazar e desencadearia as lutas de guerrilha de “libertação” das colónias, legitimando-as.

      A prosápia quixotesca de Galvão - uma estatueta do cavaleiro da triste figura adornara a sua secretária em Lisboa - vem de novo à tona no telegrama que envia a Humberto Delgado pouco antes de o navio entrar em águas brasileiras: -“Ao entrar em águas do Brasil, com a primeira fase da missão que V.Ex.ª me confiou integralmente cumprida, todas as forças sob meu comando e eu saudamos em V.Exª, o único chefe de Estado português que reconhecemos e a suprema autoridade portuguesa do DRIL.” As forças sob comando de Galvão - a secção portuguesa do DRIL -, seriam, quando muito, uma dúzia de românticos meio falhados e mal treinados seduzidos pelo fascínio da aventura, como Rosa Soskin, a enésima amante do Capitão. Enfim, afinal compreende-se pela intenção de impressionar o mundo exterior.

   Logo depois, o mesmo Galvão, exibe a sua compulsiva fanfarronice ao insultar os tripulantes, que, na espectativa da proteção brasileira, se recusaram a tripular o navio sem o prévio compromisso pelo chefe rebelde, do seu desembarque.

   Henrique Galvão não era cobarde, demonstrou-o sobejamente, pelas denúncias públicas que fez do governo de Salazar e pelo seu rocambolesco trajeto pelas prisões, hospitais e embaixadas, até ao exílio na Argentina, Venezuela e Brasil. Ao ter declinado a ideia alternativa de sequestro dum navio de guerra com o pretexto da previsível reação da respetiva tripulação preferindo um navio de passageiros totalmente desarmado, contando com a proteção de tripulantes e passageiros enquanto escudos humanos, Henrique Galvão perdeu a autoridade moral de chamar cobardes àqueles.

   O sequestro do paquete Santa Maria, agravado com o assassínio traiçoeiro de dois tripulantes e agressões a tiro e à coronhada a tripulantes e passageiros desarmados, foi um ato de cobardia. Fanfarrão, o Capitão afirmou-lhes que, no lugar deles, teria reagido enfrentando os assaltantes. Uma parvoíce. Com cerca de 600 pessoas a bordo sem treino militar, sem armas, desconhecendo a quantidade e o posicionamento dos assaltantes, com suspeita de explosivos nos porões, reagir era a opção errada.

   A faceta exibicionista de Henrique Galvão, que sempre o acompanhou, esteve bem patente quando pediu ao artífice do navio para lhe fazer três divisas em latão - exageradamente largas -, com que se adornou, acrescentando-lhes quatro estrelas autopromovendo-se a “General”. Parece anedota!

   Ao anoitecer, chega numa traineira ao paquete Santa Maria, Humberto Delgado. Ao subir a bordo é vítima dum pequeno acidente com uma grua, cujo gancho o atinge, prendendo-se no seu cinto e suspendendo-o. Prestes a cair ao mar, ter-se-á agarrado à escada vociferando um palavrão, ameaçando um repórter a quem culpava, de destruição. Um jornalista português que assistiu à cena descreveu o episódio, à redação do seu jornal: -“Assim mesmo, um pouco pendurado e esperneando, voltou-se para trás exclamando para a sua secretária que o acompanhara na lancha e foi também a bordo: -“Se eu morrer, diga há minha mulher: “morreu como um herói…”.

   Também Humberto Delgado “sofria” desta malfadada doença do heroísmo, do desejo de eternidade - da qual padece grande parte dos homens que pretendem salvar o mundo. No fundo o medo da morte e a angústia da solidão estão na origem da busca de causas dos aspirantes a heróis. Uns são-no de facto, outros não passam de impostores. Não creio, porém, que tenham sido os casos de Galvão e Delgado.
Peniche, 7 de Fevereiro de 2019
António Barreto

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