Humberto Delgado, O Mártir Socialista
(Considerações com base nos livros; O
Inimigo Nº 1 de Salazar de Paulo Jorge Castro; Acuso!, de Henrique Cerqueira; A
Tirania Portuguesa, de Iva Delgado e outros)
Quer no trajeto de Galvão quer no de Delgado há uma vertente quixotesca resultante de um exacerbado conceito que ambos tinham de si próprios e que, frequentemente, vinha à tona. Ambos tinham uma tremenda sede de glória e poder e relativizavam a importância das vítimas. Ressalve-se que, no caso da Santa Maria, as ordens emanadas de Galvão e Velo, foram de que não houvesse vítimas. Apesar disso, Henrique Galvão esteve prestes a ser assassinado pelos seus pares espanhóis por, alegadamente, ter negligenciado o combinado ao negociar com o exterior sem os consultar previamente. Foi poupado para evitar a descredibilização pública da organização e a tipificação do sequestro como ato de pirataria tipificado pelo Direito Internacional Marítimo vigente.
Avaliação de Galvão
a Mortágua: “Camilo – Chefe do Grupo:
Decisões e bravura pessoal. Manifestou sempre vontade inquebrantável quanto à
realização da operação, sendo neste capítulo o mais regularmente firme. Sujeito
a desânimos transitórios perante as dificuldades da preparação. Imaginação viva
mas mal informada. Precipitado e pouco reflexivo. Não pode ainda ser-lhe
confiada uma ação importante. Pouco previdente quanto às consequências das suas
decisões, portanto, imprudente. Politicamente, em formação - Sentimental nos
ideais.”
Proclamação aos
portugueses, de Miguel Urbano Rodrigues - jornalista que embarcara no paquete Santa
Maria em alto mar, a partir de uma traineira -, “Os nossos lemas serão: a terra para os que nela trabalham e a casa
para os que nela vivem. Liquidaremos o latifúndio como liquidaremos a
especulação imobiliária”. Um lema que se mantém vivo e em marcha nos dias
de hoje pela via reformista encetada pelos “herdeiros” políticos de Humberto
Delgado.
John Kennedy era o presidente americano em exercício. Pressionado
para deter o navio português e prender os assaltantes, Kennedy, como “bom” democrata, através do Departamento de Defesa,
do seu governo, acabaria por classificar
o sequestro como um ato político em obediência a um governo no exílio,
personificado pelo general Humberto Delgado. Uma viragem do posicionamento político
dos EUA que acabaria com o suporte político da ONU ao governo de Salazar e
desencadearia as lutas de guerrilha de “libertação” das colónias,
legitimando-as.
A prosápia
quixotesca de Galvão - uma estatueta do cavaleiro da triste figura adornara a
sua secretária em Lisboa - vem de novo à tona no telegrama que envia a Humberto
Delgado pouco antes de o navio entrar em águas brasileiras: -“Ao entrar em
águas do Brasil, com a primeira fase da missão que V.Ex.ª me confiou
integralmente cumprida, todas as forças sob meu comando e eu saudamos em V.Exª,
o único chefe de Estado português que reconhecemos e a suprema autoridade
portuguesa do DRIL.” As forças sob comando de Galvão - a secção portuguesa do
DRIL -, seriam, quando muito, uma dúzia de românticos meio falhados e mal
treinados seduzidos pelo fascínio da aventura, como Rosa Soskin, a enésima amante do Capitão. Enfim, afinal
compreende-se pela intenção de impressionar o mundo exterior.
Logo depois, o mesmo
Galvão, exibe a sua compulsiva fanfarronice ao insultar os tripulantes, que, na
espectativa da proteção brasileira, se recusaram a tripular o navio sem o
prévio compromisso pelo chefe rebelde, do seu desembarque.
Henrique Galvão não
era cobarde, demonstrou-o sobejamente, pelas denúncias públicas que fez do
governo de Salazar e pelo seu rocambolesco trajeto pelas prisões, hospitais e
embaixadas, até ao exílio na Argentina, Venezuela e Brasil. Ao ter declinado a
ideia alternativa de sequestro dum navio de guerra com o pretexto da previsível
reação da respetiva tripulação preferindo um navio de passageiros totalmente
desarmado, contando com a proteção de tripulantes e passageiros enquanto
escudos humanos, Henrique Galvão perdeu a autoridade moral de chamar cobardes
àqueles.
O sequestro do
paquete Santa Maria, agravado com o assassínio traiçoeiro de dois tripulantes e
agressões a tiro e à coronhada a tripulantes e passageiros desarmados, foi um
ato de cobardia. Fanfarrão, o Capitão afirmou-lhes que, no lugar deles, teria
reagido enfrentando os assaltantes. Uma parvoíce. Com cerca de 600 pessoas a
bordo sem treino militar, sem armas, desconhecendo a quantidade e o
posicionamento dos assaltantes, com suspeita de explosivos nos porões, reagir
era a opção errada.
A faceta
exibicionista de Henrique Galvão, que sempre o acompanhou, esteve bem patente
quando pediu ao artífice do navio para lhe fazer três divisas em latão -
exageradamente largas -, com que se adornou, acrescentando-lhes quatro estrelas
autopromovendo-se a “General”. Parece anedota!
Ao anoitecer, chega
numa traineira ao paquete Santa Maria, Humberto Delgado. Ao subir a bordo é
vítima dum pequeno acidente com uma grua, cujo gancho o atinge, prendendo-se no
seu cinto e suspendendo-o. Prestes a cair ao mar, ter-se-á agarrado à escada
vociferando um palavrão, ameaçando um repórter a quem culpava, de destruição.
Um jornalista português que assistiu à cena descreveu o episódio, à redação do
seu jornal: -“Assim mesmo, um pouco pendurado e esperneando, voltou-se para
trás exclamando para a sua secretária que o acompanhara na lancha e foi também
a bordo: -“Se eu morrer, diga há minha mulher: “morreu como um herói…”.
Também Humberto
Delgado “sofria” desta malfadada doença do heroísmo, do desejo de eternidade -
da qual padece grande parte dos homens que pretendem salvar o mundo. No fundo o
medo da morte e a angústia da solidão estão na origem da busca de causas dos
aspirantes a heróis. Uns são-no de facto, outros não passam de impostores. Não
creio, porém, que tenham sido os casos de Galvão e Delgado.
Peniche, 7 de Fevereiro de 2019António Barreto
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