Claude Monet - La route de Vétheuil, 1880
Desde há largos anos que percebi que Mário Soares não era defensor da liberdade, nem patriota e nem sempre amigo do seu amigo. O "campeão da Liberdade", o "pai da Democracia", o "patriota", o "amigo inflexível de todas as horas" foram atributos de um personagem ficcionado por ele próprio, pelo seu partido e pela generalidade da comunicação social, na sequência do golpe do 25 de Abril de 1974. Para tal conclusão basta captar o essencial de alguns episódios marcantes de uma história política com cerca de 50 anos.
Desde logo, a imposição de uma
ideologia política, “o caminho irreversível para o socialismo”, consagrado
constitucionalmente em 1976 com a colaboração do Partido Socialista que se
apresentava em maioria na Assembleia Constituinte, revela que o conceito de
Liberdade de Mário Soares e do seu partido, se restringia à sua
liberdade de impor aos outros a sua ideologia, propósito que lhe era negado
pelo antigo regime. Tal facto, por si só, é suficiente para descredibilizar o
regime instituído enquanto Democracia autêntica, bem como todos os alegados “democratas”
que o impuseram, entre os quais, e mais que qualquer outro, Mário Soares, pela omissão
de oposição, apesar do enorme prestígio de que gozava, na época, junto da
população e da generalidade da Comunicação Social.
O
processo da desastrosa descolonização imposta pelas grandes potências do pós
guerra incluindo dos países agora “nossos amigos” no âmbito da União Europeia,
permanecerá como uma mancha negra indelével da sua atividade política. Apesar
da partilha de responsabilidades, Mário Soares foi cúmplice nesse processo de
que resultou dezenas de milhares de mortos, centenas de milhar de desalojados,
milhões de africanos subjugados pelos novos opressores e de que nunca se
arrependeu apesar do estado de miséria dos respetivos povos. O conceito de
Liberdade de Mário Soares, neste caso, cingiu-se às elites dos partidos
envolvidos na guerra colonial de matriz socialista e não ao Povo correspondente,
no afã de agradar aos novos senhores do mundo que lhe proporcionavam a ascensão
ao poder em Portugal. Nem libertador nem Patriota. Mário Soares foi um ás da
sobrevivência política, de ética e altruísmo duvidosos.
Também lhe
tem sido, consensualmente imputado, o crédito da adesão de Portugal à CEE, enquanto
opção estrategicamente decisiva para a estabilidade política e o progresso
económico do país. Não o vejo assim. Antes de mais, as negociações com a CEE
tinham sido estabelecidas por Marcelo Caetano, na sequência do 2º Pacto
Colonial, que definia o objetivo comum de desenvolvimento da economia Portuguesa
e em especial das Colónias com o propósito de a preparar para a liberalização.
Por outro lado, a adesão, implicitamente, constituiu a capitulação de uma nação
que, em mais de oito séculos, travou, com todas as vicissitudes conhecidas, as
mais bravas batalhas em todos os continentes, algumas simultâneas, por vezes
contra inimigos mais poderosos, então sim, compelida pela ânsia de Liberdade,
de resto, fundadora da Nação, pela mão e pelo génio de Afonso Henriques. Com a
adesão à CEE e mais tarde à UE com a anuência de Mário Soares e, mais uma vez,
pela mão do PS, Portugal alienou os principais fatores que caracterizam um país
livre; emissão de moeda, política cambial, pautas alfandegárias e política
macroeconómica. As duas intervenções do FMI, em 1977 e 1983, no financiamento
do Governo após o desbaratamento das reservas herdadas do Antigo Regime,
revelaram a incapacidade de sobrevivência da III República sem apoio externo.
Foi então que se verificou o período de ouro da economia portuguesa do atual
regime, de 1986 e 1992, graças, essencialmente, aos fundos europeus. Mais
revelou covardia política na medida em que tal visava, também, comprometer os
parceiros europeus na salvaguarda de eventuais riscos de nova deriva comunista
interna. Tal não é compaginável com os atributos de coragem política, de amor à
liberdade e de patriotismo com que Mário Soares foi consagrado pelos seus
correligionários.
Relativamente à sua lendária lealdade aos amigos, recordo os casos de Henrique
Galvão, Salgado Zenha, Rui Mateus, Edmundo Pedro e de José Sócrates.
Henrique
Galvão, sim, foi um herói rocambolesco cuja história tem sido ignorada, apesar
do seu pioneirismo na luta contra o regime de Salazar, que enfrentou de peito
aberto, sem apoios e com destemor, acusando frontalmente o regime, num discurso
histórico que proferiu na Assembleia Nacional, pelas atrocidades cometidas
contra os negros das colónias. Valeu-lhe, mais tarde a prisão no forte de
Peniche e toda uma história fascinante que encheria os écrans caso tivesse
acontecido noutras paragens. Morreu no Rio de Janeiro, na miséria, apesar da
caridade do país irmão. No leito de morte, teve um visitante político nacional.
Um só. Mário Soares! Confesso que é comovente. Mas, em 42 anos de democracia,
Mário Soares não foi capaz de enaltecer publicamente o contributo remoto de
Galvão, “o inventor” de Humberto Delgado na luta contra o regime autoritário
de Salazar. Por uma razão; Henrique Galvão, sendo democrata, era anticomunista
e iberista. E Mário Soares queria todos os louros da luta “antifascista”. Falhou
a lealdade à memória do principal precursor do 25 de Abril.
Quanto a
Salgado Zenha, cofundador do PS e figura destacada na afirmação política deste
partido, sofreu as consequências da oposição e da ira de Mário Soares, quando percebeu,
denunciou e combateu a tentativa de infiltração comunista no partido através do
MES de Manuel Serra. Apesar da vitória interna, Salgado Zenha acabou isolado e
votado ao ostracismo político na sequência da sua derrota eleitoral às
presidenciais. Mário Soares foi fiel aos amigos subservientes; que não punham
em causa a sua liderança e autoridade. Afinal, a luta de Zenha, apenas retardou
a vitória dos radicais que ascenderam ao poder pela mão de António Costa sem
que se conheça qualquer oposição da parte do “pai da democracia”. Este, nunca
hesitou em trucidar politicamente os amigos que o desafiavam.
O caso
Rui Mateus é, talvez, o mais emblemático de todos. Fundador da primeira hora,
Rui Mateus garantiu, por vários anos, o financiamento do PS e a difusão externa
do partido, graças aos conhecimentos que adquiriu na sua estadia no Reino Unido, na Suécia e
nos Estados Unidos. Mário Soares permitiu que Rui Mateus fosse brutalmente
sacrificado, destruído politicamente e pessoalmente, na sequência do caso Emáudio,
do qual constituía a origem. Mais importante que salvar o amigo foi salvar-se a
si próprio e ao partido. Sem dó nem piedade.
Edmundo
Pedro, o honrado, corajoso e leal Edmundo Pedro, que penou nas masmorras do
Tarrafal as agruras da oposição ao regime de Salazar, “malhou” mais uma vez nos
calabouços, agora do regime “democrático”, na sequência do caricato episodio
das armas distribuídas ao PS por um subordinado de Ramalho Eanes por ordem
deste, nos dias que antecederam os conflitos do 25 de Novembro de 1975. Edmundo
Pedro, apesar de inocente, suportou silenciosamente o desconforto e opróbrio da
cadeia “democrática” sem que Mário Soares, Manuel Alegre, companheiro do episódio,
ou outro “camarada” o ilibassem do ilícito, como era de justiça. Mais uma vez,
a amizade foi sacrificada ao partido e seus dirigentes.
E o que
dizer do incansável apoio de Mário Soares a José Sócrates até ao último
momento? José António Saraiva referiu o seu recente livro “Eu e os Políticos” a
respeito deste que “todos na esfera política e jornalística conheciam a sua
compulsiva tendência para a mentira. Como foi possível a Mário Soares apoiá-lo
apesar disso e do estado caótico das finanças públicas escondidas do grande
público mas não ignoradas pelos mais próximos e que haveriam de conduzir o país
à vergonha da exiguidade política e da indigência financeira? Fica bem
confortar um amigo caído em desgraça, exceto quando, este, em nome do partido,
conduziu o país à pré-insolvência, sacrificando os cidadãos, e é arguido de ilícitos graves cometidos durante o exercício dos mais altos cargos
públicos. A pátria de Mário Soares nunca foi Portugal, mas o Partido
Socialista, ao qual tudo e todos sacrificou quando entendeu necessário.
Filho
duma relação amorosa ilícita dum prelado com uma paroquiana, Mário Soares,
foi um instrumento político de seu pai contra a igreja - que o excomungou - e
contra o regime de Salazar - que o ostracizou - tal como o famoso Colégio
Moderno, alfobre de socialistas e comunistas, entre os quais o célebre Álvaro
Cunhal. Menino mimado, Soares nunca conheceu as agruras da luta pela
subsistência material beneficiando do apoio paterno, do apoio do empresário
português Manuel Bollosa quando no exílio em Paris, mais tarde, dos donativos dos
países amigos ao Partido Socialista e, finalmente, do erário público seja pela
remuneração das funções públicas que exerceu, seja pelos sucessivos financiamentos
públicos e privados da sua fundação.
Posto
isto, a seu crédito releva a extraordinária sagacidade e coragem política que o
caracterizou no combate ao regime de Salazar e a determinação na oposição à agenda totalitária do Partido
Comunista, embora por causas meramente partidárias e apesar de nunca ter
conseguido desenvencilhar-se da “chantagem política” que este partido exerceu
sobre o PS que, finalmente, deu frutos em 2016, o ano da sua “partida”.
Que tenha
“partido” em paz consigo e com os seus são os meus votos, apesar de tudo.
Peniche 15 de Janeiro de 2017
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