Memórias de Bordo IV
O Fim de uma era (4)
Zarpámos nessa mesma tarde rumo a Madagascar onde o navio foi abastecer de combustível. Antsiranana, porto situado no extremo setentrional da ilha, foi o destino, (salvo-o-erro).
Estava mau tempo. O mar, anteriormente azul, era agora verde-esmeralda. No trajeto cruzámo-nos com um cargueiro à deriva. Ao fim de uma ou duas horas, em que nos mantivemos por ali, a pairar, passámos-lhe um cabo e iniciámos o reboque.
Costumava ir para a ré observar o navio; a proa branca, alta, não muito lançada, tinha uma certa imponência. Uma suave cachoeira esverdeada, com rendilhados brancos, transfigurando-se a cada instante, enfeitava-lhe a base. Tinha nome esquisito. Durou uns dias, quatro ou cinco. Tive pena quando, já perto de terra, transferimos o reboque. Habituara-me a vê-lo diariamente.
No porto tivemos permissão para uma curta visita à cidade. Havia por lá uma feira de artesanato. - Basso! vamos procurar um táxi. – Não há; só há riquexós, olha ali. – Não queria acreditar e continuei a procurar um táxi; nada! – Vamos a pé! – disse eu. – São quase vinte quilómetros! – Foda-se! Vamos para bordo! – Vamos à feira; damos um dinheirinho a ganhar ao homem; é assim que ganha a vida. - Contrafeito, voltei a olhar para os riquexós, talvez dois. O operador era um meia-leca, tipo filipino, de tanga, ou calções. Lá fomos. Pagámos-lhe, salvo-o-erro, dez dólares cada. Sentia-me desconfortável, não gostava daquilo. Durante cerca de meia hora, o “meia-leca” puxou o riquexó numa impressionante cadência, talvez da ordem dos 20 Km/h. – Que grande fundista! E a puxar uma carroça com dois marmanjos dentro! – Em competições oficiais fazia miséria!
Chegados na feira, ficou o estafeta à nossa espera e demos uma volta pelas barracas de vasto e rico artesanato. Comprámos umas peças; eu, um escudo com duas lanças em madeira negra - que ainda guardo -, e regressámos a “casa”.
Largámos para a derradeira etapa do nosso Vera Cruz; a travessia do Índico. Voltámos à rotina diária. Passados quatro ou cinco dias a temperatura exterior foi aumentando até atingir cerca de 40 a 45 o C. A Casa das Caldeiras, transformou-se numa espécie de fornalha, e a tarefa da “injeção”, uma tortura a que não nos furtávamos apesar de, nalgumas zonas, suportarmos, temporariamente - por 5 a 10 minutos - temperaturas da ordem dos 50 a 55 o C.
A certa altura ocorreu algo extraordinário; o pôr-do-sol! Começava cedo, cinco, seis horas da tarde, e durava horas, duas ou três; o céu tingia-se, integralmente, de tons avermelhados, laranjas amarelos! Nunca vira nada assim! Costumava ir para a amurada do convés assistir a este maravilhoso espetáculo da natureza de que ainda guardo memória visual.
Num quarto noturno, chega-se, sorrateiro, o azeiteiro, o “Polícia”, alegado cadastrado, que, constou-se, cumprira pena no Limoeiro: - “Sô” terceiro; sabe o que é isto? – Uma folha de serra. – Respondi. – Não! é uma gazua! – Uma gazua? – Sim, serve para abrir portas. – Disse, num fôlego, o eletricista; o das “televisões” do Infante. - Fantástico! Devia haver uma em todos os navios. - Disse eu. – E há, mas esta é especial, além de portas abre cadeados, faz-se assim, fez o gesto, dá-se um jeitinho e já está! Pega-se numa folha de serra de aço rápido, parte-se ao meio e, na mó, faz-se este ângulo, assim, “tá” a ver? – Disse o Polícia. – Olhe, ofereço-lha! – Obrigado, ponha aí junto ao telefone. – Disse eu, por cortesia, sem saber o que fazer àquilo.
Num dos quartos seguintes, já no último terço da etapa, voltou a chegar-se o “Polícia”. – “Sô” terceiro, esta noite não há nada p’ra gente! - Nos paquetes era costume haver uma espécie de merenda a meio dos quartos, variava com o navio; gelado de dia, febras à noite, no caso do Infante, no Vera Cruz não me recordo. Prosseguiu: - Se o “sô” terceiro quisesse podíamos fazer uma omelete. – Uma omelete? E como fazíamos isso? – O “sô” terceiro ia à câmara dos mantimentos e trazia uns ovos. – Eh lá! Isso não é grande ideia! Os ovos fazem falta ao Despenseiro. – Disse eu, pensando que ele estava a gracejar. – Não fazem nada; estão lá muitos, não conseguimos comê-los todos. Ficam cá para os chinocas. Isso é que era bom!
– A resposta fez-me pensar; a viagem estava no fim…podia ir lá ver a reserva de ovos. – Mesmo que haja ovos não temos onde fazer a omeleta! – Temos, temos, é na válvula de saída de vapor da caldeira de estibordo (uma válvula aí com 0,5 m de diâmetro e a cerca de 120 o C). Já está tudo pronto, a tampa da válvula está a rebrilhar, o Zé de Alfeizerão - um dos fogueiros - tratou de tudo; só faltam os ovos. – Então e como é que abro a porta da câmara? – Com a “gazua” que lhe ofereci! – Ah, grande malandro!- disse para mim, pegando na “gazua”, junto do telefone e avançando para a câmara dos mantimentos, descrente nas “virtudes” da “coisa”. Meti a ponta da folha na ranhura do cadeado, rodei ligeiramente para a direita e, clique! O cadeado abriu! – Ai aquele filho da mãe; se calhar é mesmo verdade a estória do Limoeiro!- Disse para comigo.
Abri a porta e entrei. Mesmo em frente uma resma aí de uma dúzia de fiadas de ovos. - Sempre é verdade! Uma caixa a menos não faz falta nenhuma; deixa-me cá levar duas, senão não chega para todos. – Olha os chinocas, hã! Tá bem, tá! – Eh, lá! Será que aquilo ali é o que estou a pensar? - Era! Vinhinho verdinho branquinho, Casal Garcia ou coisa parecida! – Venham para cá duas, que isto às secas não dá nada! – Vinha a sair quando me deparei com uma bateria de chouriços suspensa do teto. Alto aí, que omeletes lisas não matam a fome; venham para cá duas.
Entreguei a “carga” ao “Polícia” que, com o fogueiro, foi preparar a tão ansiada omeleta. E não é que, contra a minha espectativa, saiu perfeita? Saboreada a deliciosa refeição, com a frescura do verdinho ainda no paladar, saciados, prosseguimos as nossas tarefas de condução das bravateantes, impassíveis e cúmplices caldeiras.
Nos dias seguintes, andou o Despenseiro, esbaforido, a investigar a causa do misterioso “desaparecimento” dos ovos. Moita-carrasco; ninguém se desmanchou e as caldeiras não falam. Nem demos pela falta dos ovos nas ementas.
Dias depois chegámos a Kaohsiung. Ficámos ao largo durante, talvez, duas semanas. Não faltaram mantimentos.
PS:
o - Não estou certo se o porto foi o de Antsiranana.
o - O Zé de Alfeizerão é nome fictício; não recordo quem foi o chef do quarto; se um dos fogueiros, se o electricista.
o - O “Polícia” está numa das fotos que em tempos publiquei, à porta do Majestic.
Peniche, 14 de Janeiro de 2023
António Barreto
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