O fim de uma era (2)
Nos céus de Lisboa
ouviu-se o troar da sereia do Vera Cruz. Deixando para traz o cais de
Alcântara, deserto, o navio cruzou a magnífica ponte rumo à derradeira
aventura. Aquele rugido, outrora alegre e altivo, soava-me triste, melancólico
e vazio; desta vez nem um só acenar se avistou no cais.
Na ocasião nem percebi
bem o que estava a suceder; aparentemente tratava-se de uma simples medida de
racionalização económica; perdido o monopólio do transporte ultramarino não havia
capacidade para competir no mercado internacional. A entropia política, social
e económica que se vivia no país não era propícia à reestruturação e
reorientação da Companhia; faltava capital, competência e, sobretudo, vontade
política.
Um conjunto de
sensações foi-se revelando; o fascínio da navegação, essa magia se sulcar os
mares, a satisfação de tripular um navio histórico num momento histórico, e a
expetativa da longa viagem por mares “desconhecidos” - oceano índico - para
destino exótico, Kaohsiung, na ilha
de Taiwan, a que os navegadores lusos
nos tempos áureos de Portugal atribuíram o bonito nome de Formosa.
Tínhamos o navio por
nossa conta; fraco consolo, que se resumia ao uso de uma das piscinas e a
calcorrear livremente os vários espaços, destituídos da animação de outrora;
salas de cinema, salões de baile e festas, bares, etc.
Ocupar os tempos
livres era a nossa principal preocupação. No pequeno lençol de água no convés
da turística, a ré, a que pomposamente chamávamos piscina, passávamos uma boa
parte do dia. No mergulho distinguia-se o Rogério que se atirava de cabeça do
varandim do convés superior, algo que ninguém mais se atreveu a fazer; O
“Pintas”, o nosso campeão nacional dos 100 metros livres, dava-nos lições de
natação.
Num dos salões
alguns colegas faziam regulares tertúlias jogando cartas e conversando
descontraidamente. Uma das vezes, já a viagem ia bem lançada, talvez a um
terço, aproximei-me do solitário piano que lá estava, surpreendido por lá o
terem deixado e com pena do destino que o esperava. Desajeitadamente, comecei a
dedilhar as teclas; não sabia tocar mas conhecia a escala e alguns acordes. A
custo lá saiu qualquer coisa com que cantarolei, baixinho, quase em segredo,
uma cançoneta que tinha aprendido no Império.
Esgotada a inspiração,
rumava ao camarote quando um colega, concentrado no jogo, e algo displicentemente
deixou escapar: - Oh, Barreto vai lá tocar, pá. - Mas o quê? Não sei tocar
piano! - Eh, pá toca qualquer coisa! - A viagem ainda ia no início, talvez na
zona dos trópicos, mas o peso do silêncio e a ansiedade da espera já se faziam
sentir. E lá fui dedilhar as teclas como calhava. Quanto ao piano, não sei se riu
se chorou, mas fiquei com pena dele, até porque estava afinado.
A viagem ia correndo
tranquila, sem eventos de mau tempo, mas, nos primeiros quinze dias a casa das
Caldeiras foi um autêntico pandemónio, cada quarto era uma aventura! As
sequelas do incêndio que deflagrara ao cais de Alcântara traduziram-se em
múltiplos curto-circuitos, e a tarefa da “injeção” era um inferno! A acumulação
de fuligem era tal que, invariavelmente, entupia as respetivas bacias de
recolha e escoamento; cada um de nós terminava a tarefa “cozido” e revestido de
fuligem da cabeça aos pés. Passado este período o funcionamento das caldeiras
estabilizou, regressando à quase normalidade.
Num dos quartos noturnos combinei com o Basso
(salvo-o-erro) preparar uma armadilha ao Melo - era o 2º Oficial do nosso
quarto e fazia serviço no piso de controlo -, atraindo-o para a casa das
caldeiras com um pretexto qualquer e pregar-lhe uma valente banhada, ao passar
sob o labirinto de escadas e passadiços metálicos. Todo “lampeiro” fui para o
piso superior com um balde cheio de água enquanto o Basso dava uma “tanga” ao
Melo. Este, fino, não foi no paleio. Ficou a empreitada frustrada e lá vim eu, desanimado,
despejar o balde para as cavernas.
Um belo dia, vinha a
entrar de quarto quando, no mesmo local, fui “vítima” duma banhada monumental!
Ainda hoje estou para saber quem foi o autor, mas suspeito de tenha sido o “malandro”
do Melo. Após a façanha desapareceu sem deixar rasto! O que vale é que aquilo
até sabia bem devido ao calor que por lá se fazia sentir. Na verdade, precisávamos
de “construir” eventos para quebrar a longa monotonia.
À noite havia ensaio
de fados num dos bares; o guitarrista, colega da máquina, era um velhote de
Alfama. Safava-se bem. Já eu, na viola, era tipo José Afonso; “primeira,
segunda e marcha à ré”. Com alguns colegas a assistir lá íamos treinando uns
castiços a que juntava alguns temas do meu reportório pop.
Certa vez
desentendemo-nos com a harmonia; como não havia meio de chegarmos a acordo, o
bom do guitarrista, com disfarçada indignação, aconselhou-me as tocar numa
“caixa de sapatos”. Provavelmente estava certo uma vez que eu andava “a apanhar
bonés”. Achei graça e prosseguimos.
Aquilo dava para
“desopilar”. Numa das ocasiões, o Basso; - Barreto toca aí a dos vampiros. -
Eh, pá, não sei essa! - É do Zeca Afonso! - Começou a cantarolá-la, enquanto eu
procurava os respetivos acordes; no dia seguinte entregou-me a letra num
papelinho que depois passei à máquina e ainda tenho.
Por essa ocasião os
temas do José Afonso e do Adriano eram muito populares, mas eu, de facto, não
conhecia “Os Vampiros”; uma obra-prima do nosso Zeca que até aí me tinha
escapado, apesar de admirador de ambos.
Vera Cruz
(Continua)
Peniche 04.11.2023
António Barreto
Linda memória !!!
ResponderEliminar