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quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Memórias de Bordo

 

O fim de uma era (2)

 

   Nos céus de Lisboa ouviu-se o troar da sereia do Vera Cruz. Deixando para traz o cais de Alcântara, deserto, o navio cruzou a magnífica ponte rumo à derradeira aventura. Aquele rugido, outrora alegre e altivo, soava-me triste, melancólico e vazio; desta vez nem um só acenar se avistou no cais.

   Na ocasião nem percebi bem o que estava a suceder; aparentemente tratava-se de uma simples medida de racionalização económica; perdido o monopólio do transporte ultramarino não havia capacidade para competir no mercado internacional. A entropia política, social e económica que se vivia no país não era propícia à reestruturação e reorientação da Companhia; faltava capital, competência e, sobretudo, vontade política.

   Um conjunto de sensações foi-se revelando; o fascínio da navegação, essa magia se sulcar os mares, a satisfação de tripular um navio histórico num momento histórico, e a expetativa da longa viagem por mares “desconhecidos” - oceano índico - para destino exótico, Kaohsiung, na ilha de Taiwan, a que os navegadores lusos nos tempos áureos de Portugal atribuíram o bonito nome de Formosa.

  Tínhamos o navio por nossa conta; fraco consolo, que se resumia ao uso de uma das piscinas e a calcorrear livremente os vários espaços, destituídos da animação de outrora; salas de cinema, salões de baile e festas, bares, etc.

   Ocupar os tempos livres era a nossa principal preocupação. No pequeno lençol de água no convés da turística, a ré, a que pomposamente chamávamos piscina, passávamos uma boa parte do dia. No mergulho distinguia-se o Rogério que se atirava de cabeça do varandim do convés superior, algo que ninguém mais se atreveu a fazer; O “Pintas”, o nosso campeão nacional dos 100 metros livres, dava-nos lições de natação. 

   Num dos salões alguns colegas faziam regulares tertúlias jogando cartas e conversando descontraidamente. Uma das vezes, já a viagem ia bem lançada, talvez a um terço, aproximei-me do solitário piano que lá estava, surpreendido por lá o terem deixado e com pena do destino que o esperava. Desajeitadamente, comecei a dedilhar as teclas; não sabia tocar mas conhecia a escala e alguns acordes. A custo lá saiu qualquer coisa com que cantarolei, baixinho, quase em segredo, uma cançoneta que tinha aprendido no Império.

   Esgotada a inspiração, rumava ao camarote quando um colega, concentrado no jogo, e algo displicentemente deixou escapar: - Oh, Barreto vai lá tocar, pá. - Mas o quê? Não sei tocar piano! - Eh, pá toca qualquer coisa! - A viagem ainda ia no início, talvez na zona dos trópicos, mas o peso do silêncio e a ansiedade da espera já se faziam sentir. E lá fui dedilhar as teclas como calhava. Quanto ao piano, não sei se riu se chorou, mas fiquei com pena dele, até porque estava afinado.

   A viagem ia correndo tranquila, sem eventos de mau tempo, mas, nos primeiros quinze dias a casa das Caldeiras foi um autêntico pandemónio, cada quarto era uma aventura! As sequelas do incêndio que deflagrara ao cais de Alcântara traduziram-se em múltiplos curto-circuitos, e a tarefa da “injeção” era um inferno! A acumulação de fuligem era tal que, invariavelmente, entupia as respetivas bacias de recolha e escoamento; cada um de nós terminava a tarefa “cozido” e revestido de fuligem da cabeça aos pés. Passado este período o funcionamento das caldeiras estabilizou, regressando à quase normalidade.

     Num dos quartos noturnos combinei com o Basso (salvo-o-erro) preparar uma armadilha ao Melo - era o 2º Oficial do nosso quarto e fazia serviço no piso de controlo -, atraindo-o para a casa das caldeiras com um pretexto qualquer e pregar-lhe uma valente banhada, ao passar sob o labirinto de escadas e passadiços metálicos. Todo “lampeiro” fui para o piso superior com um balde cheio de água enquanto o Basso dava uma “tanga” ao Melo. Este, fino, não foi no paleio. Ficou a empreitada frustrada e lá vim eu, desanimado, despejar o balde para as cavernas.

   Um belo dia, vinha a entrar de quarto quando, no mesmo local, fui “vítima” duma banhada monumental! Ainda hoje estou para saber quem foi o autor, mas suspeito de tenha sido o “malandro” do Melo. Após a façanha desapareceu sem deixar rasto! O que vale é que aquilo até sabia bem devido ao calor que por lá se fazia sentir. Na verdade, precisávamos de “construir” eventos para quebrar a longa monotonia.

  À noite havia ensaio de fados num dos bares; o guitarrista, colega da máquina, era um velhote de Alfama. Safava-se bem. Já eu, na viola, era tipo José Afonso; “primeira, segunda e marcha à ré”. Com alguns colegas a assistir lá íamos treinando uns castiços a que juntava alguns temas do meu reportório pop.

   Certa vez desentendemo-nos com a harmonia; como não havia meio de chegarmos a acordo, o bom do guitarrista, com disfarçada indignação, aconselhou-me as tocar numa “caixa de sapatos”. Provavelmente estava certo uma vez que eu andava “a apanhar bonés”. Achei graça e prosseguimos.

   Aquilo dava para “desopilar”. Numa das ocasiões, o Basso; - Barreto toca aí a dos vampiros. - Eh, pá, não sei essa! - É do Zeca Afonso! - Começou a cantarolá-la, enquanto eu procurava os respetivos acordes; no dia seguinte entregou-me a letra num papelinho que depois passei à máquina e ainda tenho.

   Por essa ocasião os temas do José Afonso e do Adriano eram muito populares, mas eu, de facto, não conhecia “Os Vampiros”; uma obra-prima do nosso Zeca que até aí me tinha escapado, apesar de admirador de ambos.


Vera Cruz

(Continua)  

Peniche 04.11.2023

António Barreto

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