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sábado, 31 de maio de 2025

Perpétuos analfabetos

 

Perpétuos analfabetos



Tenho um certo desconforto, uma quase fobia, quando tenho que frequentar qualquer instituição pública: câmaras municipais, juntas de freguesia, finanças - ui! -, centros de saúde, hospitais, registos civil e predial, etc..


É algo que vem de longe. Recordo-me do alvoroço que havia lá por casa quando, pelos anos 50/60, se ia pagar a água na câmara municipal. Uma aflição. Pais fora, cada um na sua lide, um deles lá tinha que fazer um desvio no trajeto do regresso para fazer o pagamento.


Nesse tempo a maior parte da população adulta era analfabeta ou semianalfabeta - nos anos 40 e início dos 50 o ensino obrigatório era a 3ª classe. Gente rude, habituada à incerteza diária, sentiam-se intimidados quando entravam nesses locais. A medo, la perguntavam ao primeiro que lhes aparecia: - “Ah meu senhor, sabe-me dezer onde é que se paga aqui a áuga?” - o pescador, tirava de imediato o boné, em sinal de respeito, como fazia quando calhava ir à igreja. Se lhe pediam assinatura, era o cabo dos trabalhos; lentamente, meio trémulos, lá desenhavam o nome.


Era importante dar uma imagem apatetada para suscitar a indulgência dos zelosos funcionários. Homens que, diariamente enfrentavam a morte, tinham medo de entrar em locais públicos. O medo compulsivo do “papel selado”, traduzido na frase, que, por aqui e ali se ouvia aos supostos delatores: - “embrulho-te numa folha de papel selado que nunca mais tens conserto”.


Ah, mas hoje tudo mudou: democracia, simplificação dos serviços, edifícios modernos, tecnologia avançada, pessoal qualificado, cidadão alfabetizado, emancipado e dignificado. Enfim, um novo paradigma no relacionamento do cidadão com a administração.


tempos tive que me deslocar a uma repartição local para tratar de um assunto, por sinal, resultante dum lapso do respetivo organismo. Sistema de senhas, ajuda imediata a operar a maquineta, cadeiras disponíveis, ecrã com o número de vez. Fantástico! Um luxo!


No momento certo avancei para o respetivo balcão, disse ao que ia. Deram-me um papel e uma caneta. Preferi o portátil e fui para casa esgravatar no PC. Enviei a “redação” para o endereço indicado. Já está. Suspirei de alívio.


Desconfiado, o assunto era sério, voltei de tarde. Em boa hora. Senha, outro balcão, outra pessoa, explicação: - Está aqui, está aqui o seu mail. Eu posso fazer-lhe isso. Mas olhe que devia trazer isto numa pen. E o PDF é o número 5. E é preciso assinatura digital. - comecei a ficar com pele de galinha. -Estou feito ao bife”. -Pensei. - Você quer dado e arregaçado. Não. Para isto não é necessária a assinatura digital, basta o BI. - Renasci, dizendo em voz baixa, gracejando: o que posso fazer é pagar-lhe um cafezinho e pedir perdão a Deus na igreja mais próxima. -Olhe, há aqui uma bem perto!


Safei-me neste primeiro embate. A minha postura de uma certa humildade apalermada, ajudou. A pessoa do outro lado, no meio daquela complexidade, até foi compreensiva e colaborante.


Já disse que o assunto era complexo. Precisava de informações e fui pedi-las no dia seguinte. Chuva se Deus a dava. Estacionamento aí a 100 m do local. -”Agora é que é o “elas!””. - Pensei.


-”Afinal, quem é o senhor? Nós não sabemos quem é! Tem que ir a tal parte pedir uma certidão”. - Lá fui, não era muito longe. A pé. Chuva que era um “regalo”. Repartição cheia. Tirei a senha. - “Seja o que Deus quiser. Estou por tudo.” Uma pessoa a atender, ar cansado e resignado, tal como o público que aguardava a vez suspirando impaciente.



Aí uma hora depois, outra pessoa tratou do meu assunto, num ápice, murmurando -”Não há gente para atender, somos só nós”´. Entregou-me o tal papel a troco de cinco euros. - “Estou safo! Ala para a câmara”, - pensei. Fui, depois de aconselhar uma jovem aflita por uma certidão de uma mota, ou algo do género. E a chuva, fiel, à minha espera. Safou-me o carapuço do blusão.


Cheguei. -”Tem assinatura digital?”. -”Como? O que é isso?” -”Não lhe deram um papelinho quando tirou o cartão de cidadão?. Está lá o pin”. -”Acho que tenho qualquer coisa mas não sei onde está. E estou longe de casa”. Mas não basta a assinatura conforme o cartão de cidadão?”. -”Não! Sabe o que é um regulamento? Para este caso é necessária a assinatura digital!”


“Pronto, pensei que podia simplificar as coisas. Então onde arranjo isso?. -”Pode tratar disso em tal parte”. - Lá fui. Parte do trajeto de carro, parte a pé. Chuva sempre a cair. Eu encharcado que nem um pinto.


Lá chegado, o costume; senha e espera, boas instalações, bons assentos, gente resignada, minha vez. - “Veio em má altura, o sistema está a falhar”. - disse a pessoa que me atendeu, de meia-idade e ar cansado, forçando um sorriso que mais parecia um esgar. - Senti um calafrio; -”como raio vou saber se a altura é boa?”. - “Ah, está com sorte, já funciona”. - “Estou salvo!” - pensei, dizendo, ao que pretendia. Após breve explicação: - “Já está. A chave móvel está ativada, agora já pode assinar com o pin”. - “O pin? - “Sim, aquele que vem com o cartão de cidadão!”. - “Não sei onde está. Estou longe de casa”. -”Espere aqui e vá àquele guiché logo que esteja livre”. Esperei, esperei, entrei à má fila, temendo uma repreensão.


Expliquei-me ante a pessoa, com ar cansado e cordial, que me atendeu. Mais um relambório e...-”diga-me quatro números. - Respondi, sem perceber bem. Era o pin, o famoso pin. -”E este aqui é puk. Não o perca nem dê o pin a ninguém! Olhe que os funcionários costumam pedi-lo. Não pode pedir isto muitas vezes, se o fizer é-lhe cancelado o cartão de cidadão!”. - Chiça! - murmurei.


Fiz a viagem de regresso, parte a pé, parte de carro, chuvinha sempre a cair e eu a escorrer.


”- Cá estou”. - Disse triunfante após o pequeno calvário dos preliminares, entregando os papeis a quem me atendia. Este digitou no PC passou-me um aparelho com teclas e números. -”Ponha aí o código”. - Teclei o pin. -”Não está a dar”. - Fiquei gelado!. -”Dê cá, qual é o pin?”. - Lembrei-me da recomendação de há pouco. -”Quero lá saber”. - Disse-lhe o pin. -” Já deu. Já está!”. -”Aleluia! Boa tarde e obrigado”. Ala para casa.


Acreditem que sei ler, escrever e contar, leio uns livrecos, esgatanho umas guitarradas e, perante este labirinto kafkiano senti-me um analfabeto. Se usasse boné, tinha-o tirado respeitosamente afivelando um ar amedrontado.


Muita coisa mudou, na Administração e nos cidadãos, mas a distância entre ambos permanece imutável. E assim continuará.

                                                                        Edvard Munch


Peniche, 31 de maio de 2025

António Barreto


sábado, 17 de maio de 2025

Nos Mares do Fim do Mundo

 

Nos Mares do Fim do Mundo

Bernardo Santareno


- Era de Ílhavo, sr doutor. Uma peste, uma praga de Deus! Aquilo na era home, era o próprio diabo!…


Tantos e tão cruéis agravos fez, que um dia, durante uma das suas últimas viagens, a tripulação revoltou-se. E tendo-o amarrado de pés e mãos, prestes a baldeá-lo, mantinham-no deitado e seguro sobre a amurada do navio: Hesitavam…

Logo o velho capitão num golpe de audácia:


- Vamos rapazes: Assim não estou bem, doem-me as costas. Resolvam: borda fora p’ró mar; ou então, depressa p’ra dentro!…


Surpreendidos e dominados pela coragem do velho, os homens abrandaram: e puseram-no dentro.

Uma vez em terra nenhum fugiu ao castigo do terrível capitão: um a um desgraçou-os a todos, inexoravelmente.


Adélia Maria

Peniche, 17 de maio de 2025

António Barreto