Perpétuos analfabetos
Tenho um certo desconforto, uma quase fobia, quando tenho que frequentar qualquer instituição pública: câmaras municipais, juntas de freguesia, finanças - ui! -, centros de saúde, hospitais, registos civil e predial, etc..
É algo que vem de longe. Recordo-me do alvoroço que havia lá por casa quando, pelos anos 50/60, se ia pagar a água na câmara municipal. Uma aflição. Pais fora, cada um na sua lide, um deles lá tinha que fazer um desvio no trajeto do regresso para fazer o pagamento.
Nesse tempo a maior parte da população adulta era analfabeta ou semianalfabeta - nos anos 40 e início dos 50 o ensino obrigatório era a 3ª classe. Gente rude, habituada à incerteza diária, sentiam-se intimidados quando entravam nesses locais. A medo, la perguntavam ao primeiro que lhes aparecia: - “Ah meu senhor, sabe-me dezer onde é que se paga aqui a áuga?” - o pescador, tirava de imediato o boné, em sinal de respeito, como fazia quando calhava ir à igreja. Se lhe pediam assinatura, era o cabo dos trabalhos; lentamente, meio trémulos, lá desenhavam o nome.
Era importante dar uma imagem apatetada para suscitar a indulgência dos zelosos funcionários. Homens que, diariamente enfrentavam a morte, tinham medo de entrar em locais públicos. O medo compulsivo do “papel selado”, traduzido na frase, que, por aqui e ali se ouvia aos supostos delatores: - “embrulho-te numa folha de papel selado que nunca mais tens conserto”.
Ah, mas hoje tudo mudou: democracia, simplificação dos serviços, edifícios modernos, tecnologia avançada, pessoal qualificado, cidadão alfabetizado, emancipado e dignificado. Enfim, um novo paradigma no relacionamento do cidadão com a administração.
Há tempos tive que me deslocar a uma repartição local para tratar de um assunto, por sinal, resultante dum lapso do respetivo organismo. Sistema de senhas, ajuda imediata a operar a maquineta, cadeiras disponíveis, ecrã com o número de vez. Fantástico! Um luxo!
No momento certo avancei para o respetivo balcão, disse ao que ia. Deram-me um papel e uma caneta. Preferi o portátil e fui para casa esgravatar no PC. Enviei a “redação” para o endereço indicado. Já está. Suspirei de alívio.
Desconfiado, o assunto era sério, voltei de tarde. Em boa hora. Senha, outro balcão, outra pessoa, explicação: - Está aqui, está aqui o seu mail. Eu posso fazer-lhe isso. Mas olhe que devia trazer isto numa pen. E o PDF é o número 5. E é preciso assinatura digital. - comecei a ficar com pele de galinha. -Estou feito ao bife”. -Pensei. - Você quer dado e arregaçado. Não. Para isto não é necessária a assinatura digital, basta o BI. - Renasci, dizendo em voz baixa, gracejando: o que posso fazer é pagar-lhe um cafezinho e pedir perdão a Deus na igreja mais próxima. -Olhe, há aqui uma bem perto!
Safei-me neste primeiro embate. A minha postura de uma certa humildade apalermada, ajudou. A pessoa do outro lado, no meio daquela complexidade, até foi compreensiva e colaborante.
Já disse que o assunto era complexo. Precisava de informações e fui pedi-las no dia seguinte. Chuva se Deus a dava. Estacionamento aí a 100 m do local. -”Agora é que é o “elas!””. - Pensei.
-”Afinal, quem é o senhor? Nós não sabemos quem é! Tem que ir a tal parte pedir uma certidão”. - Lá fui, não era muito longe. A pé. Chuva que era um “regalo”. Repartição cheia. Tirei a senha. - “Seja o que Deus quiser. Estou por tudo.” Uma pessoa a atender, ar cansado e resignado, tal como o público que aguardava a vez suspirando impaciente.
Aí uma hora depois, outra pessoa tratou do meu assunto, num ápice, murmurando -”Não há gente para atender, somos só nós”´. Entregou-me o tal papel a troco de cinco euros. - “Estou safo! Ala para a câmara”, - pensei. Fui, depois de aconselhar uma jovem aflita por uma certidão de uma mota, ou algo do género. E a chuva, fiel, à minha espera. Safou-me o carapuço do blusão.
Cheguei. -”Tem assinatura digital?”. -”Como? O que é isso?” -”Não lhe deram um papelinho quando tirou o cartão de cidadão?. Está lá o pin”. -”Acho que tenho qualquer coisa mas não sei onde está. E estou longe de casa”. Mas não basta a assinatura conforme o cartão de cidadão?”. -”Não! Sabe o que é um regulamento? Para este caso é necessária a assinatura digital!”
“Pronto, pensei que podia simplificar as coisas. Então onde arranjo isso?. -”Pode tratar disso em tal parte”. - Lá fui. Parte do trajeto de carro, parte a pé. Chuva sempre a cair. Eu encharcado que nem um pinto.
Lá chegado, o costume; senha e espera, boas instalações, bons assentos, gente resignada, minha vez. - “Veio em má altura, o sistema está a falhar”. - disse a pessoa que me atendeu, de meia-idade e ar cansado, forçando um sorriso que mais parecia um esgar. - Senti um calafrio; -”como raio vou saber se a altura é boa?”. - “Ah, está com sorte, já funciona”. - “Estou salvo!” - pensei, dizendo, ao que pretendia. Após breve explicação: - “Já está. A chave móvel está ativada, agora já pode assinar com o pin”. - “O pin? - “Sim, aquele que vem com o cartão de cidadão!”. - “Não sei onde está. Estou longe de casa”. -”Espere aqui e vá àquele guiché logo que esteja livre”. Esperei, esperei, entrei à má fila, temendo uma repreensão.
Expliquei-me ante a pessoa, com ar cansado e cordial, que me atendeu. Mais um relambório e...-”diga-me quatro números. - Respondi, sem perceber bem. Era o pin, o famoso pin. -”E este aqui é puk. Não o perca nem dê o pin a ninguém! Olhe que os funcionários costumam pedi-lo. Não pode pedir isto muitas vezes, se o fizer é-lhe cancelado o cartão de cidadão!”. - Chiça! - murmurei.
Fiz a viagem de regresso, parte a pé, parte de carro, chuvinha sempre a cair e eu a escorrer.
”- Cá estou”. - Disse triunfante após o pequeno calvário dos preliminares, entregando os papeis a quem me atendia. Este digitou no PC passou-me um aparelho com teclas e números. -”Ponha aí o código”. - Teclei o pin. -”Não está a dar”. - Fiquei gelado!. -”Dê cá, qual é o pin?”. - Lembrei-me da recomendação de há pouco. -”Quero lá saber”. - Disse-lhe o pin. -” Já deu. Já está!”. -”Aleluia! Boa tarde e obrigado”. Ala para casa.
Acreditem que sei ler, escrever e contar, leio uns livrecos, esgatanho umas guitarradas e, perante este labirinto kafkiano senti-me um analfabeto. Se usasse boné, tinha-o tirado respeitosamente afivelando um ar amedrontado.
Muita coisa mudou, na Administração e nos cidadãos, mas a distância entre ambos permanece imutável. E assim continuará.
Edvard Munch
Peniche, 31 de maio de 2025
António Barreto