Anatomia de uma Revolução
A Reforma Agrária em
Portugal, 1974 – 1976
(António Barreto)
Esta obra de António Barreto é a síntese, em português, da sua tese de
doutoramento efetuada em 1984 na Universidade de Genebra, e foi elaborada com
base em investigações realizadas de 1979 a 1982 no Gabinete de Estudos Rurais
da Universidade Católica.
Vinculado a factos comprováveis, o livro “Anatomia de uma Revolução”
mostra as dinâmicas sociais e políticas que revolucionaram o mundo rural do
Alentejo, através das quais, o Partido Comunista assegurou a hegemonia política
na região que se prolongou até à atualidade.
Publicado em 1987 este livro é uma espécie de “livro maldito” dada a
forma algo misteriosa como se tornou inacessível ao público e ignorado pela
generalidade da crítica e comunicação social. Tal facto leva-nos a supor, à
semelhança do que sucedeu noutros casos - como no livro de Rui Mateus “Memórias
de um PS Desconhecido” - que há censura de facto em Portugal relativamente a
qualquer obra que se debruce sobre as vicissitudes do regime, e, ou, das
principais forças políticas que o compõem.
A iniciativa desta publicação, confirmada pelo autor, foi, sobretudo, da
historiadora Fátima Bonifácio, mas também de Maria Filomena Mónica e de Rui
Ramos, todos eles com obras relevantíssimas relacionadas com a história
política social e económica de Portugal.
A escrita simples e eficaz de António Barreto, associada ao tipo de
letra e qualidade do papel adotado pelo editor tornam a leitura fácil,
agradável e recomendável.
A Reforma Agrária no Alentejo,
mais propriamente, Alentejo e Ribatejo - Zona de Intervenção da Reforma
Agrária, ZIRA -, consistiu na ocupação de propriedades rurais por trabalhadores,
assalariados agrícolas e agricultores, organizados pelo Partido Comunista (PC),
incentivados pelo Governo e apoiados pelas Forças Armadas e GNR, com pretexto no
alegado absentismo e ineficiente utilização agrícola da terra.
Na sequência do 25 de Abril, do 28 de Setembro e do 11 de Março, o PC,
beneficiando da passividade e, ou, cumplicidade dos restantes partidos a braços
com as tarefas inerentes à sua própria organização interna, assume o controlo
do Movimento das Forças Armadas, da Junta de Salvação Nacional e do Governo -
primeiro Governo Provisório, de Vasco Gonçalves - ocupando ou controlando o
aparelho estatal, os organismos cruciais centrais, regionais e locais.
Revogada a constituição de 1933 e correspondentes atualizações, sustentando-se
nas novas estruturas do poder e na “legitimidade revolucionária”, a partir de
Lisboa, o PC destaca para o Alentejo membros do seu Comité Central e militantes
urbanos, os quais, juntamente com os escassos militantes locais e o aparelho do
Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE) -
movimento político supostamente independente mas na verdade controlado pelo PC
-, desenvolvem intensa atividade, desdobrando-se em reuniões, palestras,
comícios e manifestações, mobilizando as populações para as ocupações,
constituindo comissões, grupos de trabalho, sindicatos e, consumadas aquelas,
organizando as tristemente célebres Unidades Coletivas de Produção.
Apesar da instabilidade do operariado rural alentejano, caracterizado
pelos baixos salários e precariedade, resultante do predomínio dos
proprietários, beneficiários de relações privilegiadas com o poder cessante,
não havia conflitos sociais no Alentejo antes da Revolução dos cravos.
A adesão do proletariado rural tinha por motivação não o acesso à
propriedade da terra mas sim à estabilidade do emprego e do salário. Por outro
lado, a adesão inicial de alguns camponeses, pequenos proprietários, visava,
sobretudo, obter um pouco mais de terra para cultivo.
Os resultados dos Grupos de Trabalho constituídos para identificação das
terras abandonadas e mal cultivadas destinadas às ocupações, goraram as
espectativas dos revolucionários; toda a terra arável estava bem cultivada, com
exceção de alguns casos - onde as culturas não garantiam a melhor produtividade
- calculados pelos técnicos em cerca de 10 % da área total.
Ante a inesperada deceção foram desativados os grupos de trabalho e
definidos novos critérios de ocupação. Instituiu-se uma fórmula de cálculo por
pontos, mediante a qual seriam objeto de ocupação todas as terras com mais de
50 mil pontos.
Naquela fórmula entravam variáveis como a qualidade da terra, as
culturas instaladas, as alfaias e os equipamentos disponíveis em cada
propriedade. Foi assim que, como o próprio Ministro da Agricultura da época
explicitou publicamente, o objeto das ocupações deixou de ser as terras
abandonadas ou mal exploradas para ser as melhor equipadas e cultivadas,
constituindo um desincentivo ao investimento dos proprietários.
Impulsionada pelos sindicatos, comissões e grupos de trabalho
comunistas, a dinâmica do processo revolucionário não conhecia limites, estendendo-se
as ocupações a propriedades de qualquer dimensão, violando o princípio da
proteção da pequena propriedade tal como Álvaro Cunhal expressou publicamente.
Assim, foi alienado o apoio dos pequenos proprietários, os quais, subitamente,
se viram a braços com a necessidade de defender, pela força, as terras que
tinham granjeado ao longo dos anos com muito suor e privações.
Atabalhoadamente, sem qualquer apoio governamental ou partidário,
proprietários e pequenos agricultores, constituíram as Associações Livres de
Agricultores (ALA) e outras organizações, as quais, diga-se em abono da
verdade, não eram vistas nem achadas na regulamentação da atividade agrícola
promovida pelos sindicados e sancionada pelo Governo, como os Contratos
Coletivos de Trabalho. Estes, inicialmente de âmbito local, passaram a
rapidamente a regionais e nacionais, com um articulado totalmente decidido,
discricionariamente, pelos sindicatos comunistas, sem negociação ou qualquer
tipo de intervenção dos proprietários.
Os sindicatos investiram-se, nesta época, de poder institucional, implicitamente
reconhecido pelo MFA e pelo Governo, agindo como extensão do aparelho
governamental, legitimando ou não, o que entendessem adequado à Revolução
Agrária.
Foi neste âmbito que foi instaurado o emprego compulsivo, processo em
que os sindicatos comunistas impunham aos proprietários quotas de trabalhadores
de acordo com o seu próprio critério, baseado exclusivamente na disponibilidade
de mão-de-obra, dissociado das efetivas necessidades e possibilidades das
explorações.
Os conflitos motivados pela resistência dos proprietários, quando
ocorriam, eram dirimidos pela GNR e, ou Forças Armadas - entre as quais se
destacou o tristemente célebre Regimento de Vendas Novas cujos operacionais,
nas suas tarefas revolucionárias, chegaram a ornamentar-se com boinas
ilustradas com a figura do assassino Guevara - que, invariavelmente, tomavam o
partido dos trabalhadores.
Ocupadas as propriedades e
constituídas as UCP, estas foram autorizadas a apropriar-se do produto das
colheitas das sementeiras efetuadas pelos proprietários. Nos casos em que as
ocupações tivessem ocorrido após as colheitas, os organismos estatais
envolvidos no processo de comercialização, retinham o produto da respetiva venda
e entregavam-no aos sindicatos que, por sua vez, o disponibilizavam à
correspondente UCP.
Desapossados das suas terras e equipamentos, os proprietários, com a
cumplicidade ativa das estruturas governamentais, foram ainda vítimas do
confisco do produto das suas sementeiras. As reservas que o Governo lhes
prometera nunca lhes foram atribuídas. A alguns porém, aos que viviam
exclusivamente da atividade agrícola, foi atribuída uma pequena pensão a título
de sobrevivência.
Passada a euforia inicial, a falta de meios para pagamento de salários e
preparação das sementeiras, emergiu como travão natural às ocupações. O Governo,
além de incentivar e legalizar estas a
posteriori, passou a autorizar, com
garantia do Estado, o financiamento bancário das UCP. Esta decisão do 6º
Governo Provisório, liderado por Mário Soares, deu um impulso decisivo ao movimento
ocupacionista - que, rapidamente, ultrapassou o milhão de hectares -, paradoxalmente,
numa fase em que o PC começou a perder influência no aparelho estatal e no MFA.,
devido à oposição política, cada vez mais intensa, dos restantes partidos. O
Partido Socialista (PS), que desempenhou papel decisivo na instauração da
democracia, ficou indelevelmente associado à fase mais intensa das ocupações
decorrentes da reforma Agrária.
Instituída a Nova Ordem, as UCP, na sua grande maioria incapazes de
superar as dificuldades decorrentes da exploração, foram ficando pelo caminho,
insolventes, deixando ao Governo o ónus da liquidação das correspondentes
dívidas bancárias.
Ironicamente, o PC, historicamente defensor dos aumentos salariais dos
trabalhadores, passou a queixar-se dos elevados salários praticados pelos
escassos proprietários privados que sobreviveram às ocupações, alegando risco
de inviabilidade económica das UCP!
À resistência política, tardia, dos partidos moderados, PS, PPD e CDS, e
à oposição dos elementos, igualmente moderados, no seio do MFA, correspondeu
uma fortíssima oposição no terreno por parte dos agricultores, finalmente
agregados na Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP). Desdobrando-se em
centenas de comícios por todo o país, promovendo barragens nas vias principais,
de que ficou célebre a de Rio Maior, a CAP mobilizou o mundo rural e a
população civil em geral para a “meia” contrarrevolução que veio a culminar no
25 de Novembro de 1975.
A Constituição de 1976, apesar de elaborada sob coação das forças
comunistas e, por isso, eivada de referências de matriz socialista, inauguraram
o Novo Regime de direito democrático, designado por terceira República.
Há quem afirme que a verdadeira razão da origem do 25 de Novembro terá
sido a declaração de independência de Angola ocorrida em 11 de Novembro do
mesmo ano. Segundo os defensores desta tese, o prolongamento do período
revolucionário imposto pelo PC, recusando perentoriamente eleições, tinha por
objetivo garantir a entrega incondicional de todas as Colónias aos movimentos
de inspiração comunista, como, efetivamente, veio a ocorrer.
Garantido o objetivo principal o
PC deixou “correr o marfim” da Contra Revolução, aliviando a pressão interna a
troco da garantia de um lugar à mesa da democracia. Esta foi-lhe concedida
pelos vencedores do 25 de Novembro nas pessoas de Melo Antunes e Ramalho Eanes.
Um elevado preço que ainda hoje está a ser pago pelos portugueses,
consubstanciado no elevado endividamento e num pífio crescimento económico,
resultante, em grande parte, do crescimento desmesurado do aparelho estatal e
dos privilégios cumulativamente atribuídos ao funcionalismo público.
António Barreto foi Ministro da Agricultura do 1º Governo Constitucional
em 1977, e autor da famosa Lei Barreto que desagradou aos comunistas a ponto de
estes exigirem a sua demissão a Mário Soares a troco dos votos de que o PS
necessitava após o fracasso das negociações com o PSD.
No final deste processo em que foi destruído, quase completamente, o
aparelho produtivo nacional, gastas a quase totalidade das reservas do país,
sem acesso aos mercados financeiros, O Governo, insolvente perante uma inflação
galopante, acabou por pedir a intervenção do Fundo Monetário Internacional
(FMI) em 1977. O ciclo do “orgulhosamente sós”, como os “democratas”
classificam o regime de Salazar, estava, finalmente, concluído.
Autor de uma reforma agrária completamente forjada a partir das
estruturas militares e governamentais, o Partido Comunista conquistou a sua
base social de apoio que, mais coisa menos coisa, lhe confere, ainda hoje, a
escassa relevância social que detém e o desproporcionado poder corporativo que,
entretanto, adquiriu pela via sindical.
Um livro oportuno que, além de mostrar as vicissitudes da Reforma
Agrária aos mais novos e “refrescar” a memória dos menos novos, ilustra como a
convivência do Partido Socialista com a extrema-esquerda que hoje se verifica,
vem de muito longe. De facto, as cumplicidades dos membros fundadores do PS com
a extrema-esquerda é muito anterior a 74, nomeadamente, no exílio dourado em
Argel, em que aqueles alinhavam simultaneamente com os comunistas e com
Humberto Delgado, e na candidatura de Norton de Matos à Presidência da
República no longínquo ano de 1948 em que, Mário Soares, então militante
comunista, a mando do PC foi o Secretário-geral daquela candidatura encarregue
ainda de comunicar ao candidato a ordem de desistência emanada do Comité
Central.
O futuro constrói-se sobre os erros do passado.
António Barreto
Peniche, 16 de Agosto de 2020
António Barreto
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