A Rebelião das Massas
(Ortega e Gasset)
Prólogo para os franceses:
- A obra de caridade mais própria
do nosso tempo consiste em não publicar livros supérfluos.
(E a mais sensata: não os ler)
- A linguagem não permite ao
homem exprimir-se integralmente. É ilusório pensar o contrário. - A linguagem,
é, por essência, diálogo, e todas as outras formas do falar reduzem a potência
da sua eficácia.
- O costume dos intelectuais
falarem à Humanidade é a forma mais sublime e desprezível de demagogia. Foi
adotado por volta de 1750 por intelectuais destrambelhados, ignorantes dos seus
próprios limites, sem se darem conta de que o sacramento da palavra carece de
“mui delicada administração”.
- “Unde sapientia venit et quis est locus inteligentiae?” (“Sabeis de
algum lugar do mundo onde exista inteligência?”), perguntou Job aos
amigos, mercadores e viajantes que andaram pelo mundo. A difusão na Europa da
obra de Ortega e Gasset, mais que a
demonstração da universalização da palavra, é um sintoma da pavorosa e
asfixiante homogeneidade de problemas em que toda a Europa está a cair. O
confinamento de cada país, que proporcionava a possibilidade de “arejamento” de
ideias acedendo a outros com atmosferas mais desanuviadas, acabou. Todos os
países Europeus têm problemas idênticos e tal provoca uma sensação de asfixia
insuportável. (Este tema é também abordado por José Gil no seu livro, “Portugal
o Medo de Existir”).
- Desde Otão III - século XI -,
que a vivência dos europeus consistia em conviver entre si. As guerras que
travavam não eram mais do que guerras em família em que o vencedor nunca
aniquilava o vencido. Assemelhavam-se a guerras de emulação como a dos jovens
nas aldeias ou a disputa de partilhas pelos herdeiros. Carlos V disse de
Francisco I: “O meu primo Francisco e eu estamos completamente de acordo: os
dois queremos Milão”.
(Esta condição aplica-se
excecionalmente a portugueses e espanhóis; o cruzamento da população e as
disputas ao longo da história foram tais que nos permitem concluir que se trata
do mesmo povo. Talvez aqui radique a ideia do iberismo).
- Um dos erros mais graves do
pensamento moderno consiste em confundir sociedade com associação; ao contrário
da associação, a sociedade não se constitui por um acordo de vontades. Esta
resulta da convivência entre pessoas, precede aquela, segrega costumes, usos,
língua, direito e poder político. Aquela regula aspetos dessa convivência. O
direito não tem eficácia na regulação entre pessoas sem convivência efetiva
prévia.
- A História da Europa mostra que
a unidade da sociedade europeia, longe de ser um ideal, é um facto de muito
antiga quotidianidade. A ameaça chinesa ou islâmica serão suficientes para
despoletar o processo constitutivo dos Estados Unidos da Europa.
(De facto foi a necessidade de
prevenir conflitos bélicos entre europeus que despoletou esse processo com a
entrada em vigor, em 1958, do Tratado de Roma entre França, Alemanha Ocidental,
Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo).
Longe de ser uma fantasia a unidade da Europa é uma realidade. Fantasia
é a crença de que França, Alemanha, Itália ou Espanha são realidades
substantivas e independentes. Todos os povos da Europa vivem submetidos a um
poder público, réplica da ciência mecânica, designado por “equilíbrio europeu”
ou “balance of Power”; “the great secret of modern politics”
segundo Robertson - historiador do
século XVIII -, “une nation composée de
plusiers”, segundo Montesqieu, “la grand famille continentale”, segundo Balzac.
No equilíbrio resultante da
pluralidade reside a unidade da Europa. Porém esta unidade é ameaçada pelo
homem-massa; um tipo de homem caracterizado pelo esvaziamento de identidade que
se difundiu no continente europeu. Um homem sem história, sem memória; uma
carapaça constituída por meros idola fori,
pronto a fingir ser qualquer coisa, que só tem direitos, que não tem a nobreza
de reconhecer obrigações para si próprio - sine
nobilitate -, snob. Um homem
fechado ao liberalismo, pronto a prescindir da liberdade, da qualidade da
Europa sobre a qual se funda a autenticidade dos povos europeus.
A falta de responsabilidade intelectual dos intelectuais europeus, desde
1750, é a causa do desnorte europeu atual. Os doutrinários Guizot, Royer Collard e Buster Keaton são exceções.
O estado de liberdade resulta de uma pluralidade de forças que resistem
mutuamente.
O passado é o natural do homem
que se revela e sempre regressa. Não é para ser negado mas para ser integrado.
Os doutrinários apenas reconheciam ao homem os direitos que foram
aparecendo e consolidando-se ao longo da história - as liberdades, a
legitimidade, a magistratura, as capacidades - e não os do tipo metafísico que
resultavam de abstrações e irrealidades.
O
liberalismo individualista nasceu no século XVIII, inspirou parcialmente a
Revolução Francesa e extinguiu-se com ela.
O coletivismo nasceu no século XIX e tem origem nos escritos dos
super-reacionários De Bonald e De Maistre.
John Stuart Mill defendeu que a sobreposição do poder da sociedade
sobre o indivíduo, seja por via da opinião pública seja por via legislativa,
tenderá a aumentar, em consequência da compulsão do homem para impor aos outros
a sua opinião e os seus gostos enquanto detiver o poder, algo que, por sua vez,
tende a aumentar.
A vinculação do homem a uma ideologia política é uma imbecilidade, uma
forma de hemiplexia moral.
A política esvazia o homem de
solidão e intimidade, da sua ânsia de espiritualidade e conhecimento; o
politicismo integral é uma das técnicas usadas para o socializarem.
Definido o “homem-massa”, importa perceber, em primeiro lugar, se este
tipo de homem - que não está verdadeiramente aberto a nenhuma instância
superior - é reformável; se os graves defeitos que possui e que põem em causa a
sobrevivência do Ocidente podem ser corrigidos.
Em segundo lugar, se nas sociedades modernas há espaço de afirmação da
individualidade das novas gerações. Improvável, se não impossível. Limitado,
inexoravelmente pelo próximo, o jovem indivíduo acabará por abandonar as ideias
próprias da sua idade e adotar as propostas estandardizadas, necessariamente
obtidas através de processo coletivo, um processo de massas.
A
Europa assemelha-se a uma prisão sobrelotada onde cada prisioneiro tem de
mover-se sincronizado com todos os outros conforme regulamentado. Uma tal
eventualidade, a supressão do individualismo sob o qual se ergueu a Europa e
floresceu a humanidade, acarretará o seu fim, à semelhança da decadência do
Baixo-império.
Assumir a dificuldade da situação é a primeira condição para a reversão
da mesma, embora seja muito difícil salvá-la quando chegou a hora de cair sob a
mão dos demagogos, os grandes estranguladores de civilizações, como a grega e a
romana.
A demagogia é uma forma de
degeneração intelectual que apareceu em França por volta de 1750, irradiando
para todo o continente a ideia de que os grandes problemas humanos se resolvem
através da revolução. Revolução geral, segundo Leibniz; a vontade de transformar, subitamente, tudo e em todos os
géneros.
A aparente tradição cultural revolucionária da França constitui um
constrangimento para o enfrentamento dos seus problemas atuais. Apesar da
Grande Revolução, e de várias outras, sinistras ou ridículas, o certo é que a
França viveu quase todo o século (XIX) sob a tutela de regimes autoritários ou
contrarrevolucionários.
A “razão histórica” é o único método que permite menor probabilidade de
erro de previsão na evolução das sociedades humanas. O fracasso habitual das
revoluções reside na sobreposição da abstração de modelos de sociedade
imaginárias à realidade concreta das mesmas.
Contrariamente à astronomia e à química, os problemas humanos são
históricos, por isso de máxima concreção. A opinião pública francesa foi
tiranizada pela ascensão do seu racionalismo físico-matemático. Contemplando os
últimos cento e cinquenta anos da vida pública francesa (aproximadamente de
1780 a 1930, coincidente com a Revolução Industrial), constata-se que, os seus
geómetras, físicos e médicos falharam quase sempre nas suas previsões
políticas, enquanto os seus historiadores habitualmente acertaram.
Malebranche (padre filósofo
adepto de Descartes e Platão) rompeu com um amigo por ver, na sua mesa, um
livro de Tucídides(historiador grego
da Guerra do Peloponeso).
Decartes é o homem a quem a
Europa mais deve. Porém, três séculos de experiência racionalista mostram-nos
os seus limites; a raison cartesiana,
limitada à matemática, física e biologia, que proporcionou triunfos jamais
sonhados sobre a natureza, revelou-se infrutífera nos assuntos humanos,
convidando à sua integração noutra razão mais radical, a “razão histórica”.
Esta mostra-nos a futilidade de
qualquer revolução geral, a inutilidade da súbita transformação de uma
sociedade para recomeçar de novo a história como pretendiam os confucionistas
de 89.
As revoluções, hipocritamente incontinentes nas promessas de direitos,
violaram sempre, pisaram, rasgaram o direito fundamental do homem, a definição
da sua substância: o direito à continuidade.
A única diferença radical entre a
história humana e a “história natural” é que aquela não pode nunca começar de
novo.
Segundo Kohler e outros, a
distinção entre o homem e o orangotango ou o tigre, não reside na inteligência,
mas na memória: enquanto a curta memória destes os condiciona a um recomeço
quotidiano, aqueles acumulam recordações do seu passado, partindo diariamente
de um patamar superior. O homem não é nunca o primeiro homem e a sua maior
riqueza, o seu maior tesouro, reside na memória dos seus erros o que lhe
permite não os cometer de novo.
Romper a continuidade com o passado, querer começar de novo, é descer
ao nível do orangotango.
“La continuité est un droit de
l’homme; elle est un hommage à tout ce qui le distingue de la bête”. Foi Dupont-White quem assim falou por volta
de 1860.
Exemplo de continuidade é a Inglaterra, onde os mais velhos “trambelhos”
da história, a coroa e o cetro, e o cerimonial da coroação, têm uma espécie de
poder mágico, simbólico, que consiste na afirmação coletiva do vínculo de um
povo a todo o seu passado. A determinadíssima função da monarquia inglesa, destituída
de poder material, palpável, é a de, com grande eficácia, simbolizar.
O povo inglês chegou ao porvir, em todas as ordens, quase sempre antes
de qualquer outro. Empenha-se em fazer-nos constar que o seu passado,
precisamente porque está passado, porque lhe passou a ele, continua a existir
para si.
Um
povo que é senhor dos seus séculos, que circula por todo o seu tempo, é um povo
de homens. Homens que continuam no seu ontem sem deixar de viver para o futuro
e no seu presente. E este é só a presença simultânea do passado e do porvir.
Aos geniais e pueris continentais tem cabido a passiva tarefa de os
observar e seguir numa espécie de perpétuo dandismo. (recordemos que a Revolução
Gloriosa precedeu a Revolução Francesa de 1789 em cerca de cem anos, com propósitos
idênticos).
Com as festas simbólicas da
coroação, a Inglaterra opõe, ao método revolucionário, o método da
continuidade, o único que pode evitar a patologia histórica das sociedades
humanas que consiste na luta, ilustre e perene, entre paralíticos e epiléticos.
Quanto à América, a esperança dos europeus de que a sua organização socioeconómica
erradicaria a praga das crises, revelou falta, ocasional embora, da sua maior
virtude, que consiste na cultura do sentido histórico. Longe de ser o porvir a
América era o passado remoto porque era primitivismo.
Isolar e caracterizar o homem médio,
que de tudo se vai apoderando, é o objeto deste estudo, e ainda, medir a sua
capacidade de continuar a civilização moderna e a sua adesão à cultura.
A anomalia representada pelo homem-massa é uma anomalia com que é
imperioso contar independentemente da atitude de cada um face à civilização e à
cultura.
Um ensaio de serenidade no meio da tormenta é o que o leitor francês
deve esperar deste estudo.
José Ortega e Gasset
Holanda, Maio de 1937
Peniche 2 de Agosto de 2020
António Barreto
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