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domingo, 2 de agosto de 2020

A Rebelião das Massas (I)

A Rebelião das Massas

(Ortega e Gasset)

 

Prólogo para os franceses:

- A obra de caridade mais própria do nosso tempo consiste em não publicar livros supérfluos.

(E a mais sensata: não os ler)

- A linguagem não permite ao homem exprimir-se integralmente. É ilusório pensar o contrário. - A linguagem, é, por essência, diálogo, e todas as outras formas do falar reduzem a potência da sua eficácia.

- O costume dos intelectuais falarem à Humanidade é a forma mais sublime e desprezível de demagogia. Foi adotado por volta de 1750 por intelectuais destrambelhados, ignorantes dos seus próprios limites, sem se darem conta de que o sacramento da palavra carece de “mui delicada administração”.

- “Unde sapientia venit et quis est locus inteligentiae?” (“Sabeis de algum lugar do mundo onde exista inteligência?”), perguntou Job aos amigos, mercadores e viajantes que andaram pelo mundo. A difusão na Europa da obra de Ortega e Gasset, mais que a demonstração da universalização da palavra, é um sintoma da pavorosa e asfixiante homogeneidade de problemas em que toda a Europa está a cair. O confinamento de cada país, que proporcionava a possibilidade de “arejamento” de ideias acedendo a outros com atmosferas mais desanuviadas, acabou. Todos os países Europeus têm problemas idênticos e tal provoca uma sensação de asfixia insuportável. (Este tema é também abordado por José Gil no seu livro, “Portugal o Medo de Existir”).

- Desde Otão III - século XI -, que a vivência dos europeus consistia em conviver entre si. As guerras que travavam não eram mais do que guerras em família em que o vencedor nunca aniquilava o vencido. Assemelhavam-se a guerras de emulação como a dos jovens nas aldeias ou a disputa de partilhas pelos herdeiros. Carlos V disse de Francisco I: “O meu primo Francisco e eu estamos completamente de acordo: os dois queremos Milão”.

(Esta condição aplica-se excecionalmente a portugueses e espanhóis; o cruzamento da população e as disputas ao longo da história foram tais que nos permitem concluir que se trata do mesmo povo. Talvez aqui radique a ideia do iberismo).

- Um dos erros mais graves do pensamento moderno consiste em confundir sociedade com associação; ao contrário da associação, a sociedade não se constitui por um acordo de vontades. Esta resulta da convivência entre pessoas, precede aquela, segrega costumes, usos, língua, direito e poder político. Aquela regula aspetos dessa convivência. O direito não tem eficácia na regulação entre pessoas sem convivência efetiva prévia.

- A História da Europa mostra que a unidade da sociedade europeia, longe de ser um ideal, é um facto de muito antiga quotidianidade. A ameaça chinesa ou islâmica serão suficientes para despoletar o processo constitutivo dos Estados Unidos da Europa.

(De facto foi a necessidade de prevenir conflitos bélicos entre europeus que despoletou esse processo com a entrada em vigor, em 1958, do Tratado de Roma entre França, Alemanha Ocidental, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo).

   Longe de ser uma fantasia a unidade da Europa é uma realidade. Fantasia é a crença de que França, Alemanha, Itália ou Espanha são realidades substantivas e independentes. Todos os povos da Europa vivem submetidos a um poder público, réplica da ciência mecânica, designado por “equilíbrio europeu” ou “balance of Power”; “the great secret of modern politics” segundo Robertson - historiador do século XVIII -, “une nation composée de plusiers”, segundo Montesqieu, “la grand famille continentale”, segundo Balzac.

   No equilíbrio resultante da pluralidade reside a unidade da Europa. Porém esta unidade é ameaçada pelo homem-massa; um tipo de homem caracterizado pelo esvaziamento de identidade que se difundiu no continente europeu. Um homem sem história, sem memória; uma carapaça constituída por meros idola fori, pronto a fingir ser qualquer coisa, que só tem direitos, que não tem a nobreza de reconhecer obrigações para si próprio - sine nobilitate -, snob. Um homem fechado ao liberalismo, pronto a prescindir da liberdade, da qualidade da Europa sobre a qual se funda a autenticidade dos povos europeus.

   A falta de responsabilidade intelectual dos intelectuais europeus, desde 1750, é a causa do desnorte europeu atual. Os doutrinários Guizot, Royer Collard e Buster Keaton são exceções.

   O estado de liberdade resulta de uma pluralidade de forças que resistem mutuamente.

   O passado é o natural do homem que se revela e sempre regressa. Não é para ser negado mas para ser integrado.

   Os doutrinários apenas reconheciam ao homem os direitos que foram aparecendo e consolidando-se ao longo da história - as liberdades, a legitimidade, a magistratura, as capacidades - e não os do tipo metafísico que resultavam de abstrações e irrealidades.

    O liberalismo individualista nasceu no século XVIII, inspirou parcialmente a Revolução Francesa e extinguiu-se com ela.

   O coletivismo nasceu no século XIX e tem origem nos escritos dos super-reacionários De Bonald e De Maistre.

   John Stuart Mill defendeu que a sobreposição do poder da sociedade sobre o indivíduo, seja por via da opinião pública seja por via legislativa, tenderá a aumentar, em consequência da compulsão do homem para impor aos outros a sua opinião e os seus gostos enquanto detiver o poder, algo que, por sua vez, tende a aumentar.

   A vinculação do homem a uma ideologia política é uma imbecilidade, uma forma de hemiplexia moral.

   A política esvazia o homem de solidão e intimidade, da sua ânsia de espiritualidade e conhecimento; o politicismo integral é uma das técnicas usadas para o socializarem.

   Definido o “homem-massa”, importa perceber, em primeiro lugar, se este tipo de homem - que não está verdadeiramente aberto a nenhuma instância superior - é reformável; se os graves defeitos que possui e que põem em causa a sobrevivência do Ocidente podem ser corrigidos.

   Em segundo lugar, se nas sociedades modernas há espaço de afirmação da individualidade das novas gerações. Improvável, se não impossível. Limitado, inexoravelmente pelo próximo, o jovem indivíduo acabará por abandonar as ideias próprias da sua idade e adotar as propostas estandardizadas, necessariamente obtidas através de processo coletivo, um processo de massas.

      A Europa assemelha-se a uma prisão sobrelotada onde cada prisioneiro tem de mover-se sincronizado com todos os outros conforme regulamentado. Uma tal eventualidade, a supressão do individualismo sob o qual se ergueu a Europa e floresceu a humanidade, acarretará o seu fim, à semelhança da decadência do Baixo-império.

   Assumir a dificuldade da situação é a primeira condição para a reversão da mesma, embora seja muito difícil salvá-la quando chegou a hora de cair sob a mão dos demagogos, os grandes estranguladores de civilizações, como a grega e a romana.

   A demagogia é uma forma de degeneração intelectual que apareceu em França por volta de 1750, irradiando para todo o continente a ideia de que os grandes problemas humanos se resolvem através da revolução. Revolução geral, segundo Leibniz; a vontade de transformar, subitamente, tudo e em todos os géneros.

   A aparente tradição cultural revolucionária da França constitui um constrangimento para o enfrentamento dos seus problemas atuais. Apesar da Grande Revolução, e de várias outras, sinistras ou ridículas, o certo é que a França viveu quase todo o século (XIX) sob a tutela de regimes autoritários ou contrarrevolucionários.

   A “razão histórica” é o único método que permite menor probabilidade de erro de previsão na evolução das sociedades humanas. O fracasso habitual das revoluções reside na sobreposição da abstração de modelos de sociedade imaginárias à realidade concreta das mesmas.

   Contrariamente à astronomia e à química, os problemas humanos são históricos, por isso de máxima concreção. A opinião pública francesa foi tiranizada pela ascensão do seu racionalismo físico-matemático. Contemplando os últimos cento e cinquenta anos da vida pública francesa (aproximadamente de 1780 a 1930, coincidente com a Revolução Industrial), constata-se que, os seus geómetras, físicos e médicos falharam quase sempre nas suas previsões políticas, enquanto os seus historiadores habitualmente acertaram.

   Malebranche (padre filósofo adepto de Descartes e Platão) rompeu com um amigo por ver, na sua mesa, um livro de Tucídides(historiador grego da Guerra do Peloponeso).

   Decartes é o homem a quem a Europa mais deve. Porém, três séculos de experiência racionalista mostram-nos os seus limites; a raison cartesiana, limitada à matemática, física e biologia, que proporcionou triunfos jamais sonhados sobre a natureza, revelou-se infrutífera nos assuntos humanos, convidando à sua integração noutra razão mais radical, a “razão histórica”.

   Esta mostra-nos a futilidade de qualquer revolução geral, a inutilidade da súbita transformação de uma sociedade para recomeçar de novo a história como pretendiam os confucionistas de 89.

   As revoluções, hipocritamente incontinentes nas promessas de direitos, violaram sempre, pisaram, rasgaram o direito fundamental do homem, a definição da sua substância: o direito à continuidade.

   A única diferença radical entre a história humana e a “história natural” é que aquela não pode nunca começar de novo.

   Segundo Kohler e outros, a distinção entre o homem e o orangotango ou o tigre, não reside na inteligência, mas na memória: enquanto a curta memória destes os condiciona a um recomeço quotidiano, aqueles acumulam recordações do seu passado, partindo diariamente de um patamar superior. O homem não é nunca o primeiro homem e a sua maior riqueza, o seu maior tesouro, reside na memória dos seus erros o que lhe permite não os cometer de novo.

      Romper a continuidade com o passado, querer começar de novo, é descer ao nível do orangotango.

   “La continuité est un droit de l’homme; elle est un hommage à tout ce qui le distingue de la bête”. Foi Dupont-White quem assim falou por volta de 1860.

   Exemplo de continuidade é a Inglaterra, onde os mais velhos “trambelhos” da história, a coroa e o cetro, e o cerimonial da coroação, têm uma espécie de poder mágico, simbólico, que consiste na afirmação coletiva do vínculo de um povo a todo o seu passado. A determinadíssima função da monarquia inglesa, destituída de poder material, palpável, é a de, com grande eficácia, simbolizar.

   O povo inglês chegou ao porvir, em todas as ordens, quase sempre antes de qualquer outro. Empenha-se em fazer-nos constar que o seu passado, precisamente porque está passado, porque lhe passou a ele, continua a existir para si.

   Um povo que é senhor dos seus séculos, que circula por todo o seu tempo, é um povo de homens. Homens que continuam no seu ontem sem deixar de viver para o futuro e no seu presente. E este é só a presença simultânea do passado e do porvir.

   Aos geniais e pueris continentais tem cabido a passiva tarefa de os observar e seguir numa espécie de perpétuo dandismo. (recordemos que a Revolução Gloriosa precedeu a Revolução Francesa de 1789 em cerca de cem anos, com propósitos idênticos).

   Com as festas simbólicas da coroação, a Inglaterra opõe, ao método revolucionário, o método da continuidade, o único que pode evitar a patologia histórica das sociedades humanas que consiste na luta, ilustre e perene, entre paralíticos e epiléticos.

   Quanto à América, a esperança dos europeus de que a sua organização socioeconómica erradicaria a praga das crises, revelou falta, ocasional embora, da sua maior virtude, que consiste na cultura do sentido histórico. Longe de ser o porvir a América era o passado remoto porque era primitivismo.

   Isolar e caracterizar o homem médio, que de tudo se vai apoderando, é o objeto deste estudo, e ainda, medir a sua capacidade de continuar a civilização moderna e a sua adesão à cultura.

   A anomalia representada pelo homem-massa é uma anomalia com que é imperioso contar independentemente da atitude de cada um face à civilização e à cultura.

   Um ensaio de serenidade no meio da tormenta é o que o leitor francês deve esperar deste estudo.

Ortega e Gasset


José Ortega e Gasset

Holanda, Maio de 1937  


Peniche 2 de Agosto de 2020

António Barreto


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