A Greve dos camionistas de materiais perigosos
O desconhecimento dos detalhes da negociação em curso entre camionistas
e seus patrões não impede uma análise crítica tendo em conta alguns princípios
gerais e os factos que têm vindo a público.
O serviço de transporte de matérias perigosas como os combustíveis
líquidos, pelo risco que acarretam, tem de ser realizado por profissionais
muito bem preparados e em atualização permanente. O risco de incidentes de
inflamação e explosão é real; no carregamento, no transporte, na descarga, e no
regresso. Além do risco de acidentes rodoviários, existe o de inflamação nos
processos de carga e descarga associado à produção de corrente elétrica
decorrente da fricção dos materiais; o arco voltaico produzido, em caso de
ausência de escoamento à massa, pode provocar a ignição do combustível, tal
como o uso nas proximidades, de telemóveis, isqueiros, rádios, etc. (tudo o que
possa produzir um arco voltaico). Esvaziada a cisterna, o perigo de auto
inflamação é maior, dado o conteúdo de vapores combustíveis no seu interior.
Esvaziamento e enchimento deve ser feito com auxílio de gases inertes - dióxido
de carbono ou azoto - de forma a impedir a mistura do oxigénio do ar -
comburente - com o combustível -, e uma ligação de massa eficiente. Além dos
motoristas, também os operadores dos postos de abastecimento devem estar
preparados.
Compete aos Governos normalizar e fiscalizar as atividades económicas
tanto ao nível dos técnicos como dos operadores. Se é certo que, muitas vezes,
parece evidente ao comum cidadão, a falta de preparação dos técnicos, também é
verdade que parece haver uma espécie de monopólio entre os operadores deste
setor. Afinal é o que ocorre noutros setores vitais - como os do fornecimento
de energia elétrica, de água, de seguros e da banca - em que, a liberalização
imposta pela EU, paradoxalmente, conduziu ao agravamento das condições de vida
da população devido ao recorrente, despudorado e consentido abuso de posição dominante,
constitucionalmente proibido.
É este quase-monopólio dos operadores que está na base do atual conflito
em que estes, com a cumplicidade do Estado, impõem aos seus trabalhadores -
camionistas - os seus termos para o exercício da atividade visando a minimizar os
correspondentes encargos. Sendo, condicionado ao respeito da lei, um ato
legítimo, conflitua com os interesses dos trabalhadores. De facto, estes ficam
prejudicados nos apoios sociais na doença, no desemprego e nas pensões de reforma.
Tal conduziu a um conflito de natureza laboral cuja irresolução ressoltou
no extremar de posições das partes. Tratando-se dum setor estratégico do qual
depende o abastecimento alimentar da população, o funcionamento dos hospitais,
das forças de segurança, das forças armadas e, em geral, a produção de bens de
toda a ordem, justifica o acompanhamento atento do Governo. Constatando-se o
impasse negocial, há que recorrer à mediação e arbitragem através de modelos
preferencialmente consensuais entre as partes.
O recurso à greve, neste caso, não afetando o empregador a não ser
marginalmente, atinge gravemente a população pondo em causa os seus direitos
essenciais; ao trabalho, à subsistência alimentar, à saúde, ao lazer e à
tranquilidade. Os grevistas usam a população como instrumento dissuasor da
contraparte, provocando àqueles o máximo de danos possíveis e deixando estes praticamente
incólumes.
Convém ter presente que nas sociedades humanas modernas, cada indivíduo,
carecendo do seu semelhante para viver, prescinde voluntariamente de parte dos
seus direitos naturais, submetendo-se à lei - uma espécie de máximo divisor
comum dos direito individuais -, democraticamente constituída; elaborada e
aprovada com a participação de todos, diretamente ou por representação.
Compete aos Governos, legitimamente constituídos, zelar pela proteção da
população, garantindo o cumprimento da lei. É certo que temos assistido nas
últimas décadas à omissão dos vários Governos no seu dever de a fazer cumprir,
constituindo-se, implicitamente nalguns casos, cúmplices de agentes de
irregularidades ou mesmo de atos criminosos, alguns de lesa-pátria, mas tal não
justifica a exigência de demissão das suas obrigações fundamentais, por quem
quer que seja que nisso tenha interesse.
Tal porém não impede o cidadão de avaliar o comportamento de qualquer
Governo relativamente a qualquer caso e de se pronunciar sobre ele.
Vejo neste diferendo algumas vicissitudes das democracias partidárias;
os principais agentes políticos, os partidos, agem, não de acordo com
princípios previamente definidos e sufragados pela população, mas segundo os
dividendos eleitorais que, na sua ótica, cada ato lhes pode proporcionar. Uma
perversão dos princípios democráticos, pela alienação intrínseca de vínculo ao
interesse nacional.
É o que se verifica; o partido do
Governo, com a proximidade das eleições legislativas, viu neste conflito uma
oportunidade de reforçar e alargar a sua base eleitoral de apoio, adotando, à
semelhança do caso da última greve dos professores, no exercício da governação,
uma postura firme e autoritária perante os camionistas.
Ao fazê-lo perdeu capacidade mediadora no conflito e, perante a
permanente postura desafiadora daqueles, insiste numa posição de intransigência
e ameaça, contribuindo para o agravamento da conjuntura.
Acresce a perda de credibilidade resultante de contradições evidentes
com posições políticas assumidas em casos similares precedentes e do facto de
uma das partes - a dos empregadores -, ter negociadores com ligações diretas ao
partido do Governo.
Este é o momento de rever todo o setor reajustando-o em função das
disfuncionalidades identificadas, revendo a regulamentação vigente, promovendo
a concorrência efetiva no transporte dos combustíveis, estabelecendo critérios
de formação e acompanhamento dos motoristas e promovendo, dentro do possível, a
justiça, na distribuição do valor acrescentado no setor, recorrendo, se
necessário, à elaboração de novas propostas de lei que a proporcionem, sem violar
os critérios de equidade da sociedade em geral.
As oposições cometeram o mesmo erro do Governo, as à sua esquerda,
politicamente defensores dos trabalhadores contra a “opressão do patronato”,
carentes do protagonismo conjuntural proporcionado pelo apoio ao Governo para
se projetarem junto do eleitorado, ensaiam um discurso moderado de apoio aos
motoristas, dispensando-se da habitual exuberância protestativa no espaço
público, o que constitui um conforto para o Governo e os seus “tradicionais
inimigos “os patrões”.
Do lado oposto, um dos partidos, o maior, perdido no seu labirinto e
assustado com o fracasso registado no caso dos professores, mantém uma postura
ambígua, falsamente conciliadora, incapaz de assumir os seus princípios.
O outro, o mais pequeno, não hesitou e, desde a primeira hora assumiu a
posição do Governo, enfrentando as críticas inerentes. E é assim que deve ser;
cada um, sem subterfúgios, mostrar o que defende.
De resto, da plêiade de recentes partidos emergentes, há uma clara
tendência de apoio aos grevistas, cada um deles procurando tirar o melhor
partido eleitoral da conjuntura. Quanto à população, fortemente dividida, esta
mesma tendência parece prevalecer.
Convém porém não esquecer, que os alimentos e outros bens de primeira
necessidade não nascem nas prateleiras dos supermercados.
Tendo o Governo perdido credibilidade de mediação, torna-se forçoso
recorrer a outra entidade - como por exemplo, o Regulador do setor - para o
efeito, não restando àquele, outra opção senão a de fazer cumprir a lei, usando
da moderação que se impõe e sem violar direitos legalmente consagrados dos
eventuais infratores.
Para todos, o interesse nacional deve ser a prioridade, preferencialmente,
salvaguardando a dignidade dos envolvidos no conflito. É nestes casos que se
exige a tal postura de estado a que recorrentemente se faz alusão, e que tem
rareado nesta titubeante e paradoxal terceira república.
Peniche, 15 de Agosto de 2019
António Barreto*