Eh pá, se fores a terra não leves dinheiro! Quando eles topam assaltam a
malta. Assim fiz; fui a terra sem um tostão no bolso! Uma das coisas mais
estúpidas que fiz na minha vida marítima!
Foi pelos idos de 73, teria aí uns 22 anos. O Uíge fazia a carreira
Lisboa-Bissau-Lisboa. Transportava militares, nos dois sentidos. Uma missão
algo deprimente. Especialmente deprimente quando alguns tripulantes
aproveitavam para fazer um dinheirinho extra. A bordo vendiam-se relógios, rádios,
sandes, sei lá mais o quê, aos jovens e ansiosos militares que viajavam nos
porões atulhados. Daquela vez, não sei o motivo, o navio fez escala em Cabo
Verde, salvo-o-erro no Mindelo.
Admirador da música cabo-verdiana, do Bana, do Eugénio Tavares, do
Fernando Queijas, do tom dolente e ritmo ondulado das mornas e da alegria
vibrante das coladeras, tinha que a ouvir na fonte, nas tabernas, onde era
tocada em modo livre - tipo “jam session" -, habitualmente em convívio de
gerações que incluía instrumentos típicos como, rabeca, violino, viola,
cavaquinho, clarinete, reco-reco e maracas, entre garrafas de vinho tinto e
cachaça e alguma "bucha" para enganar a fome.
Anoitecia quando o navio atracou. Anda tinha umas horas livres, três ou
quatro antes do próximo quarto. E lá fui, à sorte, na direção da cidade,
perguntando às poucas pessoas que ia encontrando, por uma tasca onde fosse
possível ouvir música.
Ao passar numa rua escura, ouvi os sons ténues do que parecia ser uma
rabeca. Fui atrás deles. Encontrei a taberna. Entrei. Uma ténue luz amarelada
difundia-se na pequena sala logo após a entrada, de portas escancaradas. Em
frente o balcão com algumas garrafas e copos de vinho e cachaça. Taberneiro no
seu posto, trapo ao ombro e olhar inquisidor. Uns quantos clientes, quatro ou
cinco, estavam por ali, pacatamente, conversando e bebendo. De uma das salas do
lado vinha um som meio fanhoso da tal rabeca e algo semelhante a maracas e
reco-reco. Disseram-me que estava lá um certo fulano a tocar com miúdos “se
calhar é uma espécie de escola, pensei”. Um dos presentes, um pouco mais velho
que eu veio em minha direção. Conversámos. Não se podia entrar na sala donde
vinha a música. Era o reservado! Pediu duas violas, mandou vir uma garrafa de
vinho tinto, chamou dois colegas e fomos para uma salinha anexa, aberta.
Eram bons de viola; sobrava-lhes tempo para aprender e tocar. Tal como a
mim, afinal. Tocaram umas modas, várias; mornas e coladeras. A solo e em duo.
Maravilhado com tudo aquilo, quando chegava a minha vez acompanhava-me nuns
fadinhos, daqueles que todos os portugueses conhecem. Disseram que era bom.
Quis acompanhá-los nas coladeras. Que não, que não dava. Que não sabia. Era
verdade; não é fácil fazer os baixos bamboleantes da morna e os arpejos ritmados
da coladera. Pelo meio, íamos bebendo uns tintos, entusiasmados com a tertúlia.
“Este é que era bom para tocar connosco”. Ouvi entre a pequena multidão que se
foi juntando. “Pois era, pensei, para mim era, mas…amanhã já cá não estou!
Vamos a todo o lado e não estamos em parte nenhuma.”
Chegada a hora - Foi até à última -, despedi-me e saí. Já na rua,
percebi que era seguido. Voltei-me. Era o músico de quem tinha acabado de me
despedir. Olhei para ele sob a luz mortiça que se escapava da porta da taberna.
Era jovem, sim. Meio andrajoso, vestia algo parecido com zuarte, calças
rasgadas nalguns sítios e…descalço! Descalço, meu Deus!
Comovi-me. Tínhamos ficado amigos. Como era possível andar roto e
descalço? Pediu-me cinco escudos para uma garrafa de vinho. Disse-lhe a
verdade; não tinha! Insistiu dizendo que impedira um colega de me assaltar, de
navalha. Voltei a dizer-lhe que não tinha e convidei-o a acompanhar-me a bordo.
Dar-lhe-ia então, com todo o gosto, algum dinheiro. Não quis. Eu não tinha
tempo de ir e voltar, estava a pé.
Olhei-o mais uma vez, antes de retomar o caminho de regresso, triste e
comovido, sentindo-me profundamente estúpido por ter acatado o conselho do meu
camarada…até hoje. Ocorreu-me mais tarde que talvez tivesse aceitado a camisa,
se lha tivesse oferecido. Soube muito tempo depois que, por essa altura,
abatia-se sobre Cabo Verde a maior seca das décadas precedentes.
Desapareceu na penumbra. Nem sequer recordo o seu nome. E se o soube,
esqueci-me dele!
24 de Outubro de 2020
António Barreto
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