Publicação em destaque

Olhando Para Dentro (notas)

Olhando Para Dentro 1930-1960 (Bruno Cardoso Reis) (Em História Política Contemporânea, Portugal 1808-2000, Maphre - nota...

Pesquisar neste blogue

domingo, 1 de novembro de 2020

Cinco míseros escudos

 



   Eh pá, se fores a terra não leves dinheiro! Quando eles topam assaltam a malta. Assim fiz; fui a terra sem um tostão no bolso! Uma das coisas mais estúpidas que fiz na minha vida marítima!

   Foi pelos idos de 73, teria aí uns 22 anos. O Uíge fazia a carreira Lisboa-Bissau-Lisboa. Transportava militares, nos dois sentidos. Uma missão algo deprimente. Especialmente deprimente quando alguns tripulantes aproveitavam para fazer um dinheirinho extra. A bordo vendiam-se relógios, rádios, sandes, sei lá mais o quê, aos jovens e ansiosos militares que viajavam nos porões atulhados. Daquela vez, não sei o motivo, o navio fez escala em Cabo Verde, salvo-o-erro no Mindelo.

   Admirador da música cabo-verdiana, do Bana, do Eugénio Tavares, do Fernando Queijas, do tom dolente e ritmo ondulado das mornas e da alegria vibrante das coladeras, tinha que a ouvir na fonte, nas tabernas, onde era tocada em modo livre - tipo “jam session" -, habitualmente em convívio de gerações que incluía instrumentos típicos como, rabeca, violino, viola, cavaquinho, clarinete, reco-reco e maracas, entre garrafas de vinho tinto e cachaça e alguma "bucha" para enganar a fome.

   Anoitecia quando o navio atracou. Anda tinha umas horas livres, três ou quatro antes do próximo quarto. E lá fui, à sorte, na direção da cidade, perguntando às poucas pessoas que ia encontrando, por uma tasca onde fosse possível ouvir música.

   Ao passar numa rua escura, ouvi os sons ténues do que parecia ser uma rabeca. Fui atrás deles. Encontrei a taberna. Entrei. Uma ténue luz amarelada difundia-se na pequena sala logo após a entrada, de portas escancaradas. Em frente o balcão com algumas garrafas e copos de vinho e cachaça. Taberneiro no seu posto, trapo ao ombro e olhar inquisidor. Uns quantos clientes, quatro ou cinco, estavam por ali, pacatamente, conversando e bebendo. De uma das salas do lado vinha um som meio fanhoso da tal rabeca e algo semelhante a maracas e reco-reco. Disseram-me que estava lá um certo fulano a tocar com miúdos “se calhar é uma espécie de escola, pensei”. Um dos presentes, um pouco mais velho que eu veio em minha direção. Conversámos. Não se podia entrar na sala donde vinha a música. Era o reservado! Pediu duas violas, mandou vir uma garrafa de vinho tinto, chamou dois colegas e fomos para uma salinha anexa, aberta.

   Eram bons de viola; sobrava-lhes tempo para aprender e tocar. Tal como a mim, afinal. Tocaram umas modas, várias; mornas e coladeras. A solo e em duo. Maravilhado com tudo aquilo, quando chegava a minha vez acompanhava-me nuns fadinhos, daqueles que todos os portugueses conhecem. Disseram que era bom. Quis acompanhá-los nas coladeras. Que não, que não dava. Que não sabia. Era verdade; não é fácil fazer os baixos bamboleantes da morna e os arpejos ritmados da coladera. Pelo meio, íamos bebendo uns tintos, entusiasmados com a tertúlia. “Este é que era bom para tocar connosco”. Ouvi entre a pequena multidão que se foi juntando. “Pois era, pensei, para mim era, mas…amanhã já cá não estou! Vamos a todo o lado e não estamos em parte nenhuma.”

   Chegada a hora - Foi até à última -, despedi-me e saí. Já na rua, percebi que era seguido. Voltei-me. Era o músico de quem tinha acabado de me despedir. Olhei para ele sob a luz mortiça que se escapava da porta da taberna. Era jovem, sim. Meio andrajoso, vestia algo parecido com zuarte, calças rasgadas nalguns sítios e…descalço! Descalço, meu Deus!

   Comovi-me. Tínhamos ficado amigos. Como era possível andar roto e descalço? Pediu-me cinco escudos para uma garrafa de vinho. Disse-lhe a verdade; não tinha! Insistiu dizendo que impedira um colega de me assaltar, de navalha. Voltei a dizer-lhe que não tinha e convidei-o a acompanhar-me a bordo. Dar-lhe-ia então, com todo o gosto, algum dinheiro. Não quis. Eu não tinha tempo de ir e voltar, estava a pé.

   Olhei-o mais uma vez, antes de retomar o caminho de regresso, triste e comovido, sentindo-me profundamente estúpido por ter acatado o conselho do meu camarada…até hoje. Ocorreu-me mais tarde que talvez tivesse aceitado a camisa, se lha tivesse oferecido. Soube muito tempo depois que, por essa altura, abatia-se sobre Cabo Verde a maior seca das décadas precedentes.

   Desapareceu na penumbra. Nem sequer recordo o seu nome. E se o soube, esqueci-me dele!

24 de Outubro de 2020

António Barreto

Sem comentários:

Enviar um comentário