Agustina e seus pais, passaram a noite de Natal de 1934 num velho vagão do
comboio correio, cheio até ao tejadilho - de caixotes de passas de Alicante, e
uma urna coberta com um pano encerado -, na companhia de três cães
perdigueiros, um hortelão de frades - o Manuel Cunha; o maior mentiroso, o mais
famoso gastador de petas lá do sítio - e uma criada de servir, a Rata - que estreava
uma peineta nova. Um episódio pitoresco de que o país profundo é - ou, pelo
menos, era -, fértil e que deu lugar a este hilariante conto:
“…O comboio, na noite clara,
soltava fagulhas verdes e douradas. Víamos o rasto delas através das portas que
iam meio abertas. Eu tinha nesse ano umas luvas de lã de punhos altos, de
alpinista, e os dedos estavam vidrados pelo frio.
- Ah, lembra-me isto uma passagem que se deu em Argabiça – disse Miguel,
na sua vozinha refilona e alegre. Eu pensei para mim: “Temos espanholada.” E a
Rata interrompeu o seu piedoso discurso de Electra sobre a urna, para se
arrumar comodamente entre as caixas de passas. Era uma rapariga a jeito da
escultura Maya - estou a vê-la, um ar maciço, fecundo e antigo; os brincos de
ouro tinham crostas de cera verde. - Os de Argabiça tinham uma fábrica de urnas
- continuou Miguel -, e eram famosos por
isso. Mandavam-nas para o Brasil, a direito pelo mar dentro, atadas com sogas
umas às outras. E levavam seis dias e poucas horas a lá chegar. Seguiam as
correntes; não saltavam as ondas, iam a par delas. Isto poupava-lhes muitas
léguas. Eu andava nas podas, que não sou de Argabiça, mas um migalho mais
acima. Dois moços chegaram-se a mim e desafiaram-me: “Queres vir tu ao Pará?” -
“Quero” - disse eu. Pendurei a tesoura no cinto e meti-me com eles nos caixões,
que era a nossa maneira de embarcar. O mar estava lesto, e o coração do mar
batia como um sino. Ouvíamos cantar as sereias, e os filhos delas corriam no
fio do cachão sem se afundarem. Chegámos ao Brasil aí pela noite do Ano Bom; a
praia estava cheia de velinhas que alumiavam o mar, e as pretas traziam flores
e atiravam-nas à água.
- Cala-te fardeleiro, que não te posso ouvir! – disse a Rata. Desatou
com fúria o nó do cabelo e voltou a torcê-lo.
- Eu morra se não falo verdade! – Os olhinhos amarelos do Miguel Cunha,
a sua voz cantarina, o cabelo turdilho que ele já tinha, a pequena figura
rabina, tudo se me pregou na memória. E o tambalear do vagão nos trilhos
naquela noite de alto céu sem bruma.
- Enredas bem os teus enredos – disse meu pai entre maravilhado e
distraído.
- Que falo certo, e isso não me pesa…..Tenho como testemunha um cafezal
que podei com a minha tesoura antes de me vir embora. Ainda lá está cafezal. E
no último pé botei-lhe duas letras, que foram um A e um B. Não era Ano Bom, não
era nada disso. Era Adeus Brasil. Assim a luz do sol me alumie, como não foi
aparença.
- Eu fio-me – tornou a Rata, moída de ronha cega. Olha que pecas! Olha
que pecas!
Eu tive de repente medo. Quem viajava comigo naquele escuro lugar? Viam-se
os pinheiros e os postes desenhados no claro da lua. Os fechos de cobre da urna
tremiam levemente. Àquela hora, em casa, já a ceia tinha sido servida; e os
gatos mediam a própria sombra, com elásticos passos depois dum banquete de
espinhas. Não havia presépio; só um Cristo de barro dentro dum fanal, com cravos
nas mãos, pintados de purpurina. Eu não recebia presentes – era demasiado
pueril e até ridículo dar presentes a quem se ama. O amor não se comemora. E o
Natal até era mais belo quando era obscuro e quase inesperado no decurso dos
dias sem história. Perguntei lá em casa:
- O Miguel Cunha mente muito?
- Como uma cesta rota”
(Agustina Bessa Luís, em “A
Brusca”, extrato do conto Correio da Noite)
António J. R. Barreto
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