Há um genuíno sentimento de perda na sociedade
portuguesa pela partida de Belmiro de Azevedo. Simboliza o moderno capitalismo;
o que saiu do 25 de Abril de 74. Construiu uma obra notável sem os favores do
Estado ou dos partidos que dele se servem. Um exemplo de coragem e
persistência. A sua obra mais notável, no setor da distribuição, fez mais pelos
portugueses que qualquer governo; aumentou-nos o poder de compra ao reduzir os
preços dos bens de primeira necessidade e melhorou-nos a qualidade de vida ao
tornar-nos acessíveis a tecnologia, aliviando-nos as rotinas domésticas,
aprofundando e ampliando a socialização e a cultura. Não esteve só, mas fez
parte do processo, tendo sido pioneiro e vanguardista, também no setor da
comunicação e noutros. Um sinal de que há, na sociedade portuguesa, forças que
a podem tirar da quase indigência económica. Fez, exemplarmente, a destrinça
entre despesa e investimento, conceito que carece de maior valorização entre nós.
Porém, há um lado lunar no modelo
empresarial que adotou que importa ter presente. É certo que a turbulência
económica e social são consequências inevitáveis do progresso tecnológico e
económico mas, esta, nem sempre é virtuosa. A proliferação de
grandes centros de distribuição chegou às pequenas cidades e, mesmo nestas,
difunde-se pelos bairros, abalando as economias locais, condenando à
insolvência os pequenos estabelecimentos comerciais e de serviços que lhes
davam vida. A pequena mercearia, o talho, a peixaria, as lojas de roupas, de
eletrodomésticos, de sapatos, etc., as pequenas oficinas de serviços;
carpintarias, pichelarias, serralharias, construção, eletrodomésticos, etc..,
vão desaparecendo, deixando as cidades e as vilas desertas. Pode argumentar-se
que a ineficiência é insustentável e que deve ser banida em nome de melhor
qualidade de vida futura. Pode ser, mas não estou certo de que valha a pena. À redução
do custo de vida sucedeu, para muitos, o desemprego, o trabalho precário e a
emigração. É que, enquanto as empresas
tradicionais recorriam aos serviços locais, estabelecendo uma rede económica de
baixa produtividade mas difusora do valor acrescentado criado localmente, os
grandes grupos, ampliaram e verticalizaram a oferta, arrebatando todos os
ganhos de todas as cadeias de valor inerentes aos seus negócios. Consta que,
por cada posto de trabalho criado pelas grandes superfícies, três são
destruídos. Assim, os seus armazéns são projetados, construídos, equipados e
mantidos por empresas dos próprios grupos, e quando recorrem a subcontratação
alavancam a razão de troca em seu benefício graças ao ascendente negocial de
que dispõem minimizando as margens de lucro dos seus parceiros assim condenados
aos baixos salários. Mas não é tudo. Concentrando a distribuição num
semi-monopólio resultante do esvaziamento dos circuitos tradicionais, as grandes
superfícies constituem o principal veículo de escoamento da produção local,
cujo valor acrescentado controlam ao cêntimo reservando para si a “parte de
leão”, deixando-lhes apenas o suficiente para continuarem a produzir. Isto
depois de lhes terem imposto os investimentos inerentes, cobrando-lhes rendas
faraónicas e imputando-lhes todos os riscos do correspondente negócio,
constituindo-se em meros gestores da produção alheia! Uma versão atualizada dos “pecados”
do capitalismo identificados por Carl Marx.
Se a criação líquida de postos de trabalho é
incerta, o mesmo ocorre relativamente à qualificação dos seus colaboradores. Só no topo da
hierarquia a qualificação e os bons salários ocorrem; na base da pirâmide, o
maior contingente de emprego criado é desqualificado, mal pago, e sujeito a
condições de trabalho, por vezes, infame. A dissidência é duramente castigada. A
cultura é a do “homem providencial” e da obediência. O resultado traduz-se na brutal
concentração económica. Se há criação de riqueza, e há, a maior parte vai
direitinha para o topo. Mil e trezentos milhões de euros! Não estou certo que
todo este valor corresponda a riqueza criada e, se foi, deveria ter sido melhor
distribuída pela cadeia humana subjacente.
Neste processo, estão envolvidos os poderes
públicos centrais e locais; os primeiros porque vêm neles um meio de excelência
de controlo macroeconómico através da redução da inflação, os outros uma
saborosa fonte de receitas para a insaciável voracidade dos seus orçamentos. Os mercados municipais, em vez de agentes de promoção das
economias locais, entraram em decadência por falta de investimento público,
muitas vezes comprometido com os promotores das grandes superfícies. A
tentativa inicial de controlo da expansão daqueles estabelecimentos, na defesa da
economia tradicional, depressa se esboroou. Saiu da agenda política. Uma
economia débil, desprotegida, em mercado aberto, conduz ao endividamento
progressivo e a novos constrangimentos do progresso económico transferindo
para os países desenvolvidos a riqueza endógena. Um círculo vicioso difícil
de contrariar.
Belmiro de Azevedo jogou exemplarmente o
jogo da economia de mercado, na distribuição, nas telecomunicações, nos laminados
de madeira etc., mas não creio que tenha sido exemplar na distribuição da
riqueza produzida e no respeito pela dignidade dos seus colaboradores. No
melhor e no pior, foi um exemplo donde poderemos colher grandes ensinamentos sendo merecedor
da minha admiração e respeito.
António Barreto Peniche,
02 de Dezembro de 2017
02 de Dezembro de 2017
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