Os Actos de Pilatos
Pôncio Pilatos
Mais tarde também chamados Evangelho de Nicodemo, são compostos de duas
partes e terão sido escritos no século IV, como réplica a falsos escritos que o
imperador Maximino Daia (311-312) tinha mandado elaborar e imposto nas escolas
para vilipendiar Jesus Cristo. Com transcrições em várias línguas, apresenta
Pilatos como principal testemunha da inocência, da excelência e da divindade de
Jesus. Relata a conversão de Nicodemo e José de Arimateia e na segunda parte,
pela pena dos filhos gémeos de Simeão, relata o caráter apocalítico da descida
de Jesus aos infernos.
Memórias de nosso Senhor Jesus
Cristo regidas sob Pôncio Pilatos
Prólogo
Ananias, soldado da guarda real de ordem pretoriana e jurisconsulto
anuncia-se o autor desta obra, traduzindo do hebraico para grego os escritos
judaicos do tempo de Pôncio Pilatos, tendo-se convertido ao tomar conhecimento
do Senhor Jesus Cristo pelas Sagradas escrituras, e recebido a honra do santo
batismo. Tal sucedeu no ano 17 do imperador Flávio Teodósio e no ano 5 do
reinado de Flávio Valentino.
Vós, que lereis esta obra e
dela fareis cópias, não esqueçais e rezai para que Deus tenha compaixão de mim
e perdoe os pecados que cometi diante dele.
Paz àqueles que leem, àqueles que ouvem e às suas famílias, ámen.
Primeira parte
Caifás
Os sumos sacerdotes e os escribas
apresentaram-se a Pilatos acusando Jesus, filho de José, o carpinteiro e de
Maria, de se afirmar filho de Deus e rei e de ameaçar a lei do país violando o
sábado ao curar, por meio de duvidosas manipulações, coxos, corcundas, pessoas
com as mãos ressequidas, cegos, impotentes, surdos e endemoninhados, atribuindo
tais façanhas a ligações a Belzebu, seu chefe, a quem todos obedeciam. Replicou
Pilatos estar vedado aos espíritos impuros a expulsão de demónios.
Pilatos chamou o mensageiro e
disse-lhe: “Traz-me Jesus, mas trata-o respeitosamente.” O mensageiro saiu, e
quando avistou Jesus prostrou-se diante dele. Depois, pegou na peça de tecido
que segurava no seu braço, estendeu-a no chão, e disse: “Senhor, caminha sobre
isso e entra, pois o governador chama-te,”
Tal enfureceu os sacerdotes que
recomendaram o recurso a um simples arauto, que teria atuado sem deferências. Interrogado
por Pilatos acerca de tal comportamento, o mensageiro disse ter visto em
Jerusalém, para onde o enviara à procura de Alexandre, aquele homem, Jesus,
sentado num pequeno jumento, sendo aclamado pelos filhos dos hebreus que
seguravam ramos e estendiam as suas vestes no chão, dizendo: “Salva-nos, tu que estás nas alturas!
Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!”
Um episódio com as águias dos
porta-estandartes, salvou-os da morte por se ter revelado autêntica a adoração
daquelas a Jesus, ao debruçarem-se sobre ele por duas vezes, atemorizando, por
sua vez, Pilatos, cuja mulher, de seguida, o advertiu do sonho que tivera
acerca da inocência de Jesus. Tal não demoveu os judeus, de o continuaram a
invectivar provocando a perplexidade de Pilatos, que perguntou a Jesus a razão
do seu silêncio, tendo este respondido: “…cada
um tem o poder da sua boca, é livre de dizer o bem e o mal. Eles que vejam!”
(Ora aqui está patenteada a
questão do livre-arbítrio, como prerrogativa divina do Homem.)
Determinados, os sacerdotes,
liderados por Anás e Caifás, acusaram Jesus de nascimento ilegítimo, negado
pelos doze apóstolos, aceite, então, por aqueles, apesar de, estes, se terem
negado ao juramento por ser pecaminoso. Gorada a acusação de ilegitimidade de
Jesus, foi então acusado de desregramento por feitiçaria e por ter-se “gabado”
de ser filho de Deus. Interrogados por Pilatos acerca desta determinação dos
eclesiastas, os Apóstolos atribuíram-na às curas aos sábados, levando Pilatos,
perplexo, a atribuir à caridade de Jesus, a determinação persecutória dos
sacerdotes.
Indignado, Pilatos saiu do pretório e disse-lhes: “O sol é minha
testemunha, não encontro nada de que se possa acusar este homem.”
Reafirmando Jesus como criminoso,
os sumos-sacerdotes, desafiados por Pilatos a julga-lo segundo as leis locais,
recusaram-se a fazê-lo por lhes estar vedada a pena de morte.
(Interessante a dimensão do ódio
e, ou, medo, dos eclesiastas a Jesus; a sua lei proibia a sentença de morte,
revelando óbvias e surpreendentes preocupações humanitárias, mas, no caso de
Jesus, abdicavam da prerrogativa do seu julgamento, para lhe infligirem a pena
de morte sem pecarem!)
Perplexo e contrariado, Pilatos
voltou a Jesus perguntando-lhe se era o rei dos Judeus e que tinha feito para o
quererem condenar com tal veemência, respondendo este, não ser deste mundo o
seu reino, evidenciando a ausência de exércitos para impedirem a sua entrega
aos judeus.
“- …Tu o dizes. Eu sou rei. Eu não nasci e não vim ao mundo senão para fazer ouvir a minha voz a todos os que
são da verdade.”
- O que é a verdade?- Perguntou-lhe Pilatos.
- A verdade é do céu, respondeu Jesus. Pilatos retomou: - “E sobre a
terra não há verdade?” Jesus disse a Pilatos: - “Tu vês como os senhores do
poder sobre a terra julgam aqueles que dizem a verdade!”
(Está aqui bem patente, esta incapacidade persistente, de reconhecimento
da verdade quando inconveniente aos poderes do momento.)
O julgamento de Jesus
Perante e renitência de Pilatos os Judeus acusaram-no, então, de ter
declarado que podia demolir e reconstruir o Templo de Salomão - que levara 46
anos a construir - em três dias, sem que tal o demovesse. Que blasfemara contra
Deus e por isso merecia a pena de morte, correntemente aplicada a quem
blasfemava contra César.
- Que farei eu de ti? Perguntou
o Governador. - Faz conforme o que
recebeste. Respondeu Jesus. - E que
recebi eu? - Moisés e os profetas anunciaram a minha morte e a minha
ressurreição.
Que o levassem para o julgarem conforma a sua lei, disse Pilatos; que
não, porque a sua lei só prescrevia a lapidação para quem ofendesse a Deus e
eles queriam crucifica-lo, respondiam os Judeus; mas afinal, nem todos querem a
morte de Jesus, disse Pilatos ao ver alguns deles em lágrimas; mas, sim,
queremos, viemos todos em conjunto pedi-lo por se ter afirmado filho de Deus e
rei. Intercedeu Nicodemos pela libertação de Jesus, imerecedor da morte e que,
tal como sucedeu a Jamnés e Jambrés, servos do Faraó, acabaria por perecer se
os seus prodígios não tivessem origem divina. - Mas tu és seu discípulo, por
isso tomaste o seu partido, responderam os Judeus estremecendo e
arreganhando-lhe os dentes, instigando-o a tomar a verdade de Jesus e partilhar
da mesma sorte.
Um Judeu testemunhou perante todos como Jesus se comovera com a sua
doença, que o mantivera tolhido de dor e acamado durante trinta e oito anos, e
o curara, tal como a muitos endemoninhados e outras vítimas de maleitas
diversas. Que tinha sido ao sábado, disseram os Judeus a Pilatos. Outro saltou
e disse que, sendo cego de nascença, recuperara a vista quando Jesus pousou a
mão na sua cabeça, após ter gritado com toda a força; - Tem piedade de mim filho de David. Um ex-corcunda, um ex-leproso,
uma mulher que sofrera de hemorragias doze anos, todos afirmaram ter sido
curados por Jesus. Que os testemunhos de mulher não contavam, disseram os
Judeus. (Curiosa, esta desvalorização da mulher consagrada nas escrituras antes
de Cristo). Que era um profeta, que submetia os demónios, que tinha reerguido
Lázaro morto há quatro dias, que não sabiam porque os seus doutores em leis não
lhe obedeciam, dizia a multidão, fazendo estremecer Pilatos, que lhes
perguntou: - Porque quereis vós derramar
sangue inocente? Pediu conselho a Nicodemos e aos 12 (11) homens
(Apóstolos) que tinham testemunhado a legitimidade do nascimento de Jesus, que
o remeteram para o veredito popular. Inquiriu o povo Judeu lembrando-lhes a
tradição de libertação de um prisioneiro, pelos Ázimos, intercedendo,
implicitamente, por Jesus. - Barrabás! Bramiram
eles. - Que farei eu então de Jesus,
aquele a quem chamam Cristo? - Crucifica-o! Não és amigo de César se o
soltares. Ele diz-se filho de Deus e rei. É então aquele rei que tu queres e
não César?
Nicodemo
- Povo sempre rebelde, vós
insurgis-vos até mesmo contra os vossos benfeitores! Disse-lhes Pilatos, evidenciando
a falta de autoridade moral para o criticarem pela ingratidão que tinham
demonstrado a Deus, que os tinha salvo em todas as provações por que passaram desde
a saída do Egito até à adoração do bezerro fundido. - Nós reconhecemos como rei, César e não Jesus! Ora os magos
trouxeram-lhe presentes do Oriente, como a um soberano. Mais disseram que
este Jesus era quem Herodes queria matar quando ordenou o massacre das crianças
e que José salvara ao fugir para o Egito. -
Sim, É este! Responderam enquanto Pilatos lavava as mãos em água, frente ao
sol dizendo: - Eu estou puro do sangue
deste justo! Cabe a vós decidir! - Que o seu sangue recaia sobre nós e os
nossos filhos! Bramaram os Judeus.
(Grande era o ódio e, ou, medo
dos sumos sacerdotes, de Jesus que os impelia a abdicarem de aplicar a sua
própria lei, por não permitir a condenação à pena de morte, razão do recurso à
lei romana. De facto, o discurso de Jesus ameaçava desmantelar a estrutura
eclesiástica vigente, na qual tinham papel de destaque.)
Pilatos, deu-se, então, por vencido, informando Jesus da sentença que
lhe destinara; flagelação, segundo os costumes dos piedosos imperadores, seguida
de crucificação no jardim onde tinha sido preso (o Jardim das Oliveiras), em simultâneo
com a crucificação dos malfeitores Dimas e Gestas.
Despojado de suas vestes, cingido de linho e ostentando a coroa de
espinhos que lhe fora imposta, Jesus foi crucificado e disse: - Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que
fazem. Os soldados dividiram as suas roupas entre si, deram-lhe vinho azedo
misturado com fel e, tal como os sumos sacerdotes, escarneceram dele
desafiando-o a salvar-se, uma vez que, como dizia o letreiro. encimando a cruz,
em grego romano e hebraico, era rei dos Judeus. Gestas, (o mau ladrão) desafiou-o a salvar-se, e a eles, se é que era Cristo, sendo de
imediato repreendido por Dimas; que temesse a Deus, e recordou-lhe a justiça da
sua condenação face à injustiça da condenação de Jesus, que nenhum mal fizera.
- Senhor, lembra-te de mim no teu reino. Disse
Dimas. - Em verdade, em verdade te digo,
de hoje em diante tu estarás comigo no paraíso. Respondeu-lhe Jesus.
Soldados dividindo as vestes de Jesus
Vieram as trevas, entre a sexta e a nona horas, por eclipse do sol,
rasgando-se ao meio o véu do templo, exclamando Jesus com voz forte: - Pai,
Baddoch efkid ruel (Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito). E expirou!
(Diego Velasquez, 1632)
(continua)