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domingo, 26 de agosto de 2018

Portugal, Hoje: O Medo de Existir (notas)


Portugal, Hoje: O Medo de Existir

José Gil; Relógio de Água
(notas por António J. R. Barreto)

  
José Gil, tem uma das qualidades que mais falta fazem à sociedade portuguesa; a capacidade de ver e pensar o país desde o exterior liberto da asfixia partidária. A vida em África, Moçambique, e o estudo da filosofia em Paris, proporcionaram-lhe uma escala e profundidade de pensamento que, por vezes, transparece neste livro.  
   Alguns dos temas de “Portugal, Hoje”, andam por aí, meio enevoados no espírito de muita gente; é o caso da não-inscrição, do espaço não público, do medo e do terror, da inveja, do queixume e das pequenas coisas. Aqui e ali, confesso que não consigo seguir o seu pensamento, deteto-lhe uma só contradição, mesmo no final, a propósito de Salazar, e, por vezes, tenho a impressão de que, por detrás de tudo poderá estar algum ressentimento; quem viveu em Moçambique, que também conheci, não sai incólume das vicissitudes do processo de descolonização. Um trauma que perdurará por gerações, de consequências difíceis de entender para os que o viveram e para os portugueses em geral.
   Crítico do efeito inibidor do regime de Salazar, reconhece a sua influência histórica, identificando no atual regime a matriz controladora própria do totalitarismo das sociedades modernas nas quais, os cidadãos, são uma espécie de prisioneiros semelhantes aos que são libertos com obrigatoriedade de uso de pulseira eletrónica. Um absurdo a dizer-nos que os caminhos do progresso estão a conduzir as sociedades à perda do maior bem da humanidade, a liberdade.
   Um breve olhar sobre alguns dos temas desta obra:
   “O país da não-inscrição”, é o tema de abertura, onde, a partir de uma expressão do final de um noticiário “é a vida”, discorre sobre esta característica dos portugueses, também conhecida pelo “deixa andar”, “vamos ver”, seja o que Deus quiser”, “amanhã também é dia”, “para hoje, há, amanhã Deus dará”, “uma guitarra e um copo de vinho”, etc., que lhes cerceia  o desejo e a ambição dos grandes feitos. Uma das causas, do atraso do país. Alçada Batista também reconhecia esta “qualidade” lusa na forma como, por exemplo, na expansão ultramarina, os portugueses estabeleciam o relacionamento com as comunidades locais; à surrelfa, insinuando-se, estabelecendo acordos, envolvendo-se afetivamente, ao contrário de outros povos, que dominavam pelas armas. Na atividade económica, este defeito está bem patente, traduzindo-se em perdas económicas significativas para as empresas. No entanto, nem sempre foi assim, nem sempre é assim; não faltam gestos afirmativos dos portugueses na história, em especial a Revolta da Maria da Fonte, que viria a dar lugar à guerra da Patuleia. E muitos outros. Mas, há um lado bom neste deixa andar; a capacidade de viver a vida com os outros, uma qualidade bem portuguesa de que eu próprio sou testemunha.
   Em, “o espaço não público”, refere, com razão, a falta de um espaço público de troca de ideias, livre, como um dos principais fatores de incapacidade de o país encontrar novos caminhos de progresso. À falta de liberdade de expressão característica do regime salazarista, correspondeu, no regime atual, uma ocupação quase total do espaço público pelo sistema partidário, bloqueando a espontaneidade e troca de ideias de que o país carece. Ilustra a ideia com o caso de um físico português que preferiu o estrangeiro por lhe ser proporcionado uma velocidade de troca de informação que não seria possível em Portugal. Uma série de preconceitos ou simples diletantismo parecem perpetuar a estanqueidade das ancestrais castas, próprias dos Estados antigos como Portugal.
     Considera - no capítulo “que conhecimento da democracia?” -, que, apesar da interiorização, pela população, das regras básicas do novo regime, tal não se reflete na sua prática democrática, dando o exemplo da Madeira como sintoma, referindo também como causas, o hermetismo da academia, as práticas partidárias, o autismo dos governos, a ausência de meios de intermediação e difusão cultural - com destaque para a televisão -, responsável pelo baixo nível de conhecimento geral da população. Algo surpreendentemente identifica, como uma das principais causas desta debilidade, a incapacidade revelada pelo novo regime de suprimir o medo reverencial das populações perante as instituições e os detentores do saber, que transitou do antigo regime. Um paradoxo que, por si só, minimiza a qualidade da democracia, contrastando com os permanentes louvores da generalidade da comunidade política a uma liberdade que, de facto, não existe. Ou apenas marginalmente. “O futuro, sobretudo o futuro longínquo, não existe….Porque nada há para se inscrever, nem uma ideia para o país, nem um destino individual. …Em contrapartida, somos um país de burocratas onde o juridismo impera, em certas zonas da administração, de maneira obsessiva.”
   Cultura da pequenez que designa por “enclausuramento do sentido”, ausência de passado e de futuro, “síndroma de Liliputh” - hábito de viver as pequenas coisas sem consciência da sua pequenez -, incapacidade de diálogo - discurso saltitante e autista -, “esvaziamento da palavra” e provincianismo, são vicissitudes que identifica na sociedade portuguesa - no capítulo “pequeno infinito” - e que comprometem o progresso do país. Não será só assim, mas, é muito assim; julgo que as elites atuais não estão efetivamente empenhadas na promoção da liberdade cultural e económica das população. Têm medo de perder os seus privilégios tão “duramente” conquistados.
   O “Familiarismo”, conjunto de hábitos ancestrais com origem na família tradicional, caracterizava as relações sociais, estabelecendo uma espécie de ”democracia dos afetos”, simultaneamente promíscua, que funcionaria como refúgio de sobrevivência face ao autoritarismo do regime de Salazar servindo, de certa forma, como coadjuvante deste, enclausurando o desejo e aspirações das populações. Não é difícil reconhecer este mecanismo afetivo. Foi na África portuguesa que me apercebi do efeito que este tipo de atavismo social provocava nas pessoas; gente considerada sem préstimo na metrópole, de horizontes limitados socialmente pela tradição familiar, libertos destas amarras sociais, revelaram capacidades surpreendentes. Por outro lado, não se pode negar o efeito que os laços familiares mais restritos, tiveram, e continuam a ter, na superação dos indivíduos; a verdade é que, apesar do autoritarismo, sobretudo a partir dos anos sessenta, o sonho de um futuro melhor para as novas gerações era cada vez menos um sonho e cada vez mais uma possibilidade. Afinal, de 1950 a 1974, a evolução dos indicadores socioeconómicos em Portugal foi uma das maiores do mundo.
   Gil reconhece porém que, apesar das condições favoráveis criadas formalmente na sequência do 25 de Abril, a sociedade portuguesa permanece substancialmente fechada, incapaz de se transformar, de dar o salto para o futuro. A transformação, porém, ter-se-á iniciado com a entrada na CEE e com o cavaquismo, na sequência da enxurrada das transferências comunitárias que terão transformado a economia de poupança - geradora do “pequeno infinito” - na de consumo e gerado um pequeno exército de novos ricos, numa alegada erradicação da pobreza salazarista, apesar dos tais dois milhões de pobres que subsistem contrariando todas as “vitórias” da democracia.
   “A Europa entrou em Portugal, mas Portugal não entrou na Europa”, considera o filósofo, referindo a turbulência socioeconómica gerada pelo impacto das normas comunitárias, insuficientes para gerar as transformações de que o país carece; na educação, na economia, na administração, na fiscalidade, na investigação científica ou na saúde, concluindo violentamente que, Portugal se arrisca a desaparecer, paradoxalmente, afetivamente perdido, como toda a Europa! Afinal, a tal democracia dos afetos socialmente nociva no antigo regime, parece ser, agora, necessária à fuga das vicissitudes da entropia cultural europeia. Conclui polemicamente prevendo que a abertura de Portugal pelas “vias largas que nos unirão à Europa” acabarão com as fronteiras da nacionalidade e com o desvanecimento do país. Percebendo-se a ideia, consequência do federalismo encetado com os Tratados de Maastricht e de Lisboa à revelia das populações, fica por esclarecer o desejo de José Gil, emergindo aqui, a sua alegada fraca inscrição na cultura patriótica lusa.
   O medo, será pois, uma das causas da não ação dos portugueses de hoje; ao medo disciplinar do passado, vertical, sucedeu o medo difuso, horizontal da sociedade de controlo. Aqui radica essa coisa do “vamos andando”, “vamos a ver”, “seja o que Deus quiser”, “vou andar por aí”; da dificuldade em assumir o desconforto do positivismo social, do compromisso público com propósitos bem definidos, adotando uma postura de falsa cordialidade. Um temor, que, afinal, contribui para a baixa competência por falta de audácia, de capacidade de se reconhecer o que se é. “O medo de não estar altura impera, arruinando as potencialidades criativas”. Neste contexto, toda a dinâmica de qualificação e avaliação impulsionado pela União Europeia visando transformar a sociedade portuguesa está condenada ao insucesso ao retirar-lhe a energia remanescente que era suposto aumentar. Pode descortinar-se aqui um dos aspetos primordiais da disfuncionalidade da relação da União Europeia com Portugal, baseada na imposição de um modelo cuja eficácia pressupõe outro tipo de destinatários. Finalmente, Jesus Gil, faz uma recomendação que deveria ser levada a sério pelas mais altas instâncias nacionais e europeias, invertendo o processo atual; “há, primeiro, que erradicar o medo da sociedade portuguesa. Conquistar a maioridade, dessubjetivando-se ao enfrentar o acontecimento. Fazer explodir a imagem de si. Porque todos nós andamos “Pr’aqui” como Álvaro de Campos que dizia que “nunca conhe(ceu) quem tivesse levado porrada/Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”   
   Ao medo, à burocracia, ao apego a privilégios e velhos hábitos, junta-se a inveja e o queixume a dificultar a dinâmica de progresso da sociedade portuguesa. Uma sociedade ainda fechada, mais dependente do elemento humano do que das estruturas, onde se encobrem os conflitos, se foge ao enfrentamento e se privilegia o queixume, saída de um regime de humilhação e mutilação das forças de vida individuais, constitui o ambiente favorável à proliferação da inveja. Impedida de se expandir, essa força vital transfere-se para a comunidade, difusa mas individualizável, num misto de medo, ódio, ressentimento, desprezo, indignação resignada, contra o país, chegando a constituir uma característica da identidade lusitana. Paradoxalmente, este contexto gerou uma dinâmica de coesão social negativa contra o país, constituindo uma espécie de círculo vicioso. Simultaneamente, nas elites culturais fermentava a crença na falsa e megalómana genialidade pessoal, fenómeno de compensação imaginária, habitual nas ditaduras. A inveja implica uma relação de forças em disputa pelo poder, com efeito inibidor, retardador ou desviante de dinâmicas. Os efeitos da inveja são comparáveis aos da bruxaria, como o “mau-olhado” influenciando negativamente as pessoas indecisas, vulneráveis, de “corpo aberto”, característica dos portugueses em geral, de forma osmótica, impercetível. Do plano dual, uma espécie de transcendência forma grupos de inveja, fechados, igualitários, comportamentalmente padronizados numa agressividade latente contra a singularidade, o novo e a originalidade. O rumor, a calúnia e as múltiplas estratégias de exclusão são os modos de ação com que o grupo acaba por vencer qualquer tentativa de inovação. Decorrente da inveja, a incapacidade de admiração caracteriza o comportamento luso, que, ora ignora ora se excede na adjetivação do objeto.
   Algo surpreendentemente, o desaparecimento progressivo do queixume terá sido consequência da abundância associada ao cavaquismo, dando lugar, no início do novo século, ao protesto, à contestação e à indignação. Um passo na tomada de consciência da população dos seus direitos de cidadania e na consolidação da democracia.
   Por outro lado, a falta de autoestima dos portugueses, que não gostam uns dos outros nem de si próprios, resultará da longa sujeição humilhante, castradora, ao salazarismo, que teima em prevalecer apesar dos 40 anos de democracia e cerca de 20 anos de CEE/UE.
   A saída deste plasma paralisante passa pela inserção social efetiva de cada um, mobilizando as correspondentes energias num processo de enaltecimento pessoal e coletivo, neutralizando a atitude de autoexclusão prevalecente, cabendo aos governos fazer cumprir a lei e criar todas as condições para tal. Objetivo, quanto a mim, irrealizável, numa sociedade acorrentada a critérios eminentemente económicos, geradores de exclusão e vexação, resultantes do enquadramento fortemente dependente do país no seio da comunidade europeia onde (não) se inseriu.
   Em “O vazio e o pleno”, o autor desenvolve um conjunto de conceitos, confusos, controversos, de mecanismos individuais e coletivos bloqueadores da ascensão cultural e criativa do português e do Homem. É assim que faz depender da capacidade de aceder ao “vazio primordial” o génio da criação do novo, do “nunca antes criado”, algo inacessível aos portugueses devido à sua aversão à “ausência” que os impele ao “pleno” preenchimento da existência com a vacuidade dos pequenos prazeres da vida, afinal, mecanismo da não inscrição. Uma forma de escapar à ausência de si a si e de si ao mundo. Com origem no passado longínquo, um entorpecimento da consciência forma uma espécie de nevoeiro sobre um fundo de estuporização coletiva. Como consequência emerge o burgessismo como “variante típica lusitana da grosseria”.
   Com as exceções de Fernando Pessoa e de Herberto Hélder, o medo do vazio impede o nosso lado bárbaro de se ligar ao cosmos. Um lado bárbaro sobreposto por sucessivas camadas de cultura, desde o paganismo grego e latino à cultura celta e árabe, que o povo não consegue transformar em civilização. Em contrapartida a cultura popular em todo o país, com especial incidência nas cidades de Lisboa e Porto, assimilou práticas mágico-religiosas a partir desse fundo bárbaro, mantendo uma prática de violência social semioculta.
   Este contexto terá propiciado o desenvolvimento de uma cultura humanista, proteiforme, cristã de raiz laica, marxista, socialista, ateia, na qual o Homem constitui a medida de todas as coisas; um humanismo que define as fronteiras do bem e do mal. Porém, o fraco conhecimento da natureza humana e, por conseguinte, do que é bom ou mau para esta, esvazia o discurso humanista, levantando a hipótese de o descentramento Homem no universo resultar num maior benefício para o próprio Homem.
   É aqui que a minha “fé” no autor sofre um abalo telúrico! Pelas razões que passo a descrever: antes de mais tenho a convicção de que não há criatividade no vazio; o vazio material e mental são inatingíveis. A ciência atual ainda desconhece o que aconteceu nos 300 mil anos que antecederam o suposto Big Bang!, no plano mental, não creio que o jovem vegetativo que observei num hospital tivesse capacidade criativa. Não; a criação, a arte, que afasta o Homem da barbárie e o eleva ao transcendente, nasce do conflito, da turbulência, da angústia, da compulsão da sobrevivência e da liberdade. Desconhecemos mecanismos fundamentais da natureza humana, mas sabemos que os grandes faróis do Homem são a Liberdade e a Transcendência; tudo o mais converge para aqui. E aqui radica o tal humanismo, que integra todos os restantes componentes do universo. Criar a partir do nada é tarefa de Deus, não do homem. Presumir essa capacidade equiparando este a Deus é manifestamente excessivo. Por outro lado, o raciocínio do autor encerra uma insanável contradição: a justificação de que o descentramento do Homem do universo resultaria num maior benefício daquele relativamente ao obtido no âmbito humanista. Mas isto é uma variante do humanismo!
   Quanto aos “pequenos prazeres” em que os portugueses “desperdiçam” a sua energia; o autor não dá pistas dos grandes feitos que gostaria que aqueles fizessem. Isto faz-me lembrar a metáfora da guitarra e do copo de vinho associada, por alguns, aos portugueses. Depois de meditar um pouco concluí que tal representa uma grande virtude; a capacidade de disfrutar da vida, do mundo, dos outros! E isso é mágico! O infinito está nas pequenas coisas, mas nem todos o descobrem. O poder da “inscrição”, a ambição das grandes coisas, inexoravelmente acarreta o confronto e a abominação da guerra. Prefiro a guitarra….e, já agora,  o copo de vinho.
   O capítulo “O trauma terror e medo” valem a obra; com eloquência e sagacidade, José Gil identifica o ambiente de terror da sociedade atual e as suas causas. Ao medo imposto pelo Estado Novo, autoritário, disciplinar, com rosto, sucedeu o medo da mudança da saída do regime; geral, inconsciente, permanente. A este, sobrepôs-se o medo da sociedade de controlo; um medo difuso, sem rosto, duma sociedade excludente, normalizante, consensual, impessoal, proporcionado pelo adoção extensiva e intensiva das novas tecnologias. A sobreposição destes dois medos , constitui o “duplo esmagamento” causa do terror que se vive na sociedade atual.
   “Mais uma vez, é naturalmente, espontaneamente, que pensamos de uma só maneira, caminhamos por uma só via, como se fosse evidente que só estas existem. Porque as outras “possíveis” pertencem ao passado e verificaram-se impossíveis; e as que se apresentam como diferentes e reais levam diretamente à exclusão social. As alternativas atuais não são impossíveis, muito simplesmente não existem.”
   “Há certamente um “totalitarismo” próprio das “sociedades de controlo” (Foucault, Deleuze) atuais. A aplicação das novas tecnologias a todo o tipo de serviços, por exemplo, implica o imperativo de cumprir os regulamentos, sob pena de exclusão. A globalização acentua e generaliza este tipo de padrões únicos de comportamento – na necessidade de responder às exigências da produtividade do trabalho, de seguir as vias impostas pela funcionalidade dos serviços de saúde, de educação, de lazeres. Um exemplo emblemático já utilizado em Portugal, nos serviços prisionais, a pulseira magnética de localização a distância, que o prisioneiro levará consigo sempre que se ausente da prisão. (Em breve seremos todos prisioneiros em liberdade, controlados a distância). O cidadão só pode submeter-se e aderir, em nome da lógica funcional do sistema de regulamentação da vida social, pública e privada. Caso contrário, surge, automaticamente também, a ameaça de exclusão.
   A exclusão é, efetivamente, a ameaça que os portugueses vivem no quotidiano; o dogma da produtividade, assumindo múltiplas facetas, resulta na concentração económica, na destruição das economias locais, no abandono do interior, no macrocefalismo das grandes urbes e no centralismo. Daqui resulta todo um cortejo de consequências nefastas, desde a não inscrição, aos recorrentes incêndios, à pobreza das periferias e, sobretudo, à profunda desumanização do excluído, transformado num pária social. Paradoxalmente, num regime fundado sobre o princípio da liberdade do indivíduo, o medo de infração da norma conduz à paralisação daquele, perpetuando o fenómeno da não inscrição. Fica assim comprometida a capacidade de pensar e agir diferente, a criatividade, a singularidade, que poderia catapultar a sociedade para um novo futuro, condizente com a efetiva prática da liberdade. Um paradoxo cuja leitura não pode ser outra que não seja a de reconhecer a submissão do princípio da liberdade ao do poder das elites.
   Peca por omissão, o autor, ao não apontar vias para a desblindagem deste ambiente; a alteração do conceito de produtividade geral, englobando fatores económicos ou, até, a subalternização do princípio da produtividade aos valores sociais. Em última análise terá de se questionar o regime vigente e propor correções, alterações ou o seu termo. Um regime que induz a autocensura dos cidadãos transformando-os em prisioneiros voluntários merece extinção.
   O último capítulo “Trauma português e o clima atual” mostra o que poderá ter sido política a causa desta obra por constituir um tremendo libelo acusatório ao Governo de Santana Lopes, acusando-o de inconsequente, irresponsável, populista, mediocrático, sustentado em velhas fórmulas salazaristas e capaz de pôr em risco a própria democracia. A falta de reação popular a uma espécie de recidiva autoritária, faz temer o futuro declínio da democracia nas mãos de um qualquer Berlusconi.
    A curiosidade é que a contestação política na época, de todos os setores da esquerda e até do seio do seu próprio partido, foi tão feroz que o Presidente da República Jorge Sampaio, sentiu-se legitimado a dissolver um Parlamento apesar da maioria estável, lançando o país numa aventura suicidária que acabaria com a crise de 2008, em que o governo, para evitar a insolvência, entregou a soberania aos supervisores europeus e mundiais do FMI. A curiosidade ainda reside na omissão de caracterização do governo de Guterres, que também não acabou o segundo mandato, abandonando o posto, com o país paralisado no alegado pântano que ele próprio criara com o diletantismo da sua governação, semeando os ventos que chegariam, implacáveis, em 2008. Se não há motivações políticas neste trabalho, não andarão muito longe.
   Contudo, continuamos condenados à não-inscrição por falta de espaço público. O buraco negro deixado pelo salazarismo que bloqueou o “conatus” a que referiu “Espinoza”, foi agora ocupado pelo aparelho mediático, em especial a televisão, proporcionando a distorção da realidade, com o poder de transformar a aparência de atos e pessoas ignóbeis em algo de louvável e até, exemplar. O domínio do poder político desse espaço constitui uma nova forma de totalitarismo; mais suave, mais consentido, mas simultaneamente gerador de novos medos e do duplo-esmagamento do qual emergem vários microterrores.
   Finalmente, Gil conclui ter sido sua pretensão mostrar a fragilidade da nossa democracia, identificando duas forças lusas, que se desenvolvem impercetivelmente e que poderão contrariar este declínio; uma, a capacidade de fluir entre duas forças que nos imobilizam, outra, o nosso sentido lúcido do real, do pensamento claro proveniente da desconfiança secular do povo relativamente aos governantes.
   Considerações demasiado vagas e, a meu ver, algo desajustadas, tendo em conta que o povo já não é o mesmo. Esse povo que desconfiava compulsivamente dos governantes era constituído pela imensa massa da sociedade civil, amordaçada, humilhada pela administração pública dum regime autoritário. Hoje uma boa parte do povo está integrado no tremendo aparelho administrativo democrático, enquanto outra boa parte, beneficiária do Estado Social, é cúmplice dos poderes instituídos. Uns e outros legitimam a subjugação “democrática” da sociedade civil, pelos poderes políticos instituídos, constituindo o paradoxo das democracias totalitárias modernas.
   Concluo, com a convicção de que, nesta obra, José Gil, foi mais político que filósofo e que, apesar disso, é um exemplo do que o espaço público carece urgentemente; do fora, de gente de outras realidades, preferencialmente mais avançadas, descomprometida do circulo vicioso interno construído pelos partidos com que dominam todo o espaço público, retirando aos cidadãos a iniciativa de expressão, asfixiando-os, remetendo-os a uma imaturidade infantil permanente. A democracia está em declínio, em última análise, porque os autoproclamados democratas instalados no poder têm medo do povo livre, apesar de, permanentemente, afirmarem o contrário. 

Peniche, 26 de Agosto de 2018
António J. R. Barreto