Portugal, Hoje: O
Medo de Existir
José Gil; Relógio de
Água
(notas por António J. R. Barreto)
José Gil, tem uma das qualidades que mais falta fazem à sociedade
portuguesa; a capacidade de ver e pensar o país desde o exterior liberto da
asfixia partidária. A vida em África, Moçambique, e o estudo da filosofia em
Paris, proporcionaram-lhe uma escala e profundidade de pensamento que, por
vezes, transparece neste livro.
Alguns dos temas de “Portugal, Hoje”, andam por aí, meio enevoados no
espírito de muita gente; é o caso da não-inscrição, do espaço não público, do
medo e do terror, da inveja, do queixume e das pequenas coisas. Aqui e ali,
confesso que não consigo seguir o seu pensamento, deteto-lhe uma só
contradição, mesmo no final, a propósito de Salazar, e, por vezes, tenho a
impressão de que, por detrás de tudo poderá estar algum ressentimento; quem
viveu em Moçambique, que também conheci, não sai incólume das vicissitudes do
processo de descolonização. Um trauma que perdurará por gerações, de
consequências difíceis de entender para os que o viveram e para os portugueses
em geral.
Crítico do efeito inibidor do regime de Salazar, reconhece a sua
influência histórica, identificando no atual regime a matriz controladora
própria do totalitarismo das sociedades modernas nas quais, os cidadãos, são
uma espécie de prisioneiros semelhantes aos que são libertos com
obrigatoriedade de uso de pulseira eletrónica. Um absurdo a dizer-nos que os
caminhos do progresso estão a conduzir as sociedades à perda do maior bem da
humanidade, a liberdade.
Um breve olhar sobre alguns dos temas desta obra:
“O país da não-inscrição”, é o tema de abertura, onde, a partir de uma
expressão do final de um noticiário “é a vida”, discorre sobre esta
característica dos portugueses, também conhecida pelo “deixa andar”, “vamos
ver”, seja o que Deus quiser”, “amanhã também é dia”, “para hoje, há, amanhã
Deus dará”, “uma guitarra e um copo de vinho”, etc., que lhes cerceia o desejo e a ambição dos grandes feitos. Uma
das causas, do atraso do país. Alçada Batista também reconhecia esta
“qualidade” lusa na forma como, por exemplo, na expansão ultramarina, os
portugueses estabeleciam o relacionamento com as comunidades locais; à
surrelfa, insinuando-se, estabelecendo acordos, envolvendo-se afetivamente, ao
contrário de outros povos, que dominavam pelas armas. Na atividade económica,
este defeito está bem patente, traduzindo-se em perdas económicas
significativas para as empresas. No entanto, nem sempre foi assim, nem sempre é
assim; não faltam gestos afirmativos dos portugueses na história, em especial a
Revolta da Maria da Fonte, que viria a dar lugar à guerra da Patuleia. E muitos
outros. Mas, há um lado bom neste deixa andar; a capacidade de viver a vida com
os outros, uma qualidade bem portuguesa de que eu próprio sou testemunha.
Em, “o espaço não público”, refere, com razão, a falta de um espaço
público de troca de ideias, livre, como um dos principais fatores de incapacidade
de o país encontrar novos caminhos de progresso. À falta de liberdade de
expressão característica do regime salazarista, correspondeu, no regime atual,
uma ocupação quase total do espaço público pelo sistema partidário, bloqueando
a espontaneidade e troca de ideias de que o país carece. Ilustra a ideia com o
caso de um físico português que preferiu o estrangeiro por lhe ser
proporcionado uma velocidade de troca de informação que não seria possível em
Portugal. Uma série de preconceitos ou simples diletantismo parecem perpetuar a
estanqueidade das ancestrais castas, próprias dos Estados antigos como
Portugal.
Considera - no capítulo “que conhecimento
da democracia?” -, que, apesar da interiorização, pela população, das regras
básicas do novo regime, tal não se reflete na sua prática democrática, dando o
exemplo da Madeira como sintoma, referindo também como causas, o hermetismo da
academia, as práticas partidárias, o autismo dos governos, a ausência de meios
de intermediação e difusão cultural - com destaque para a televisão -, responsável
pelo baixo nível de conhecimento geral da população. Algo surpreendentemente
identifica, como uma das principais causas desta debilidade, a incapacidade
revelada pelo novo regime de suprimir o medo reverencial das populações perante
as instituições e os detentores do saber, que transitou do antigo regime. Um
paradoxo que, por si só, minimiza a qualidade da democracia, contrastando com
os permanentes louvores da generalidade da comunidade política a uma liberdade
que, de facto, não existe. Ou apenas marginalmente. “O futuro, sobretudo o
futuro longínquo, não existe….Porque nada há para se inscrever, nem uma ideia
para o país, nem um destino individual. …Em contrapartida, somos um país de
burocratas onde o juridismo impera, em certas zonas da administração, de
maneira obsessiva.”
Cultura da pequenez que designa por “enclausuramento do sentido”,
ausência de passado e de futuro, “síndroma de Liliputh” - hábito de viver as
pequenas coisas sem consciência da sua pequenez -, incapacidade de diálogo -
discurso saltitante e autista -, “esvaziamento da palavra” e provincianismo,
são vicissitudes que identifica na sociedade portuguesa - no capítulo “pequeno
infinito” - e que comprometem o progresso do país. Não será só assim, mas, é
muito assim; julgo que as elites atuais não estão efetivamente empenhadas na
promoção da liberdade cultural e económica das população. Têm medo de perder os
seus privilégios tão “duramente” conquistados.
O “Familiarismo”, conjunto de hábitos ancestrais com origem na família
tradicional, caracterizava as relações sociais, estabelecendo uma espécie de
”democracia dos afetos”, simultaneamente promíscua, que funcionaria como
refúgio de sobrevivência face ao autoritarismo do regime de Salazar servindo,
de certa forma, como coadjuvante deste, enclausurando o desejo e aspirações das
populações. Não é difícil reconhecer este mecanismo afetivo. Foi na África
portuguesa que me apercebi do efeito que este tipo de atavismo social provocava
nas pessoas; gente considerada sem préstimo na metrópole, de horizontes
limitados socialmente pela tradição familiar, libertos destas amarras sociais,
revelaram capacidades surpreendentes. Por outro lado, não se pode negar o
efeito que os laços familiares mais restritos, tiveram, e continuam a ter, na
superação dos indivíduos; a verdade é que, apesar do autoritarismo, sobretudo a
partir dos anos sessenta, o sonho de um futuro melhor para as novas gerações
era cada vez menos um sonho e cada vez mais uma possibilidade. Afinal, de 1950
a 1974, a evolução dos indicadores socioeconómicos em Portugal foi uma das
maiores do mundo.
Gil reconhece porém que, apesar das condições favoráveis criadas
formalmente na sequência do 25 de Abril, a sociedade portuguesa permanece
substancialmente fechada, incapaz de se transformar, de dar o salto para o
futuro. A transformação, porém, ter-se-á iniciado com a entrada na CEE e com o
cavaquismo, na sequência da enxurrada das transferências comunitárias que terão
transformado a economia de poupança - geradora do “pequeno infinito” - na de
consumo e gerado um pequeno exército de novos ricos, numa alegada erradicação
da pobreza salazarista, apesar dos tais dois milhões de pobres que subsistem
contrariando todas as “vitórias” da democracia.
“A Europa entrou em Portugal, mas Portugal não entrou na Europa”,
considera o filósofo, referindo a turbulência socioeconómica gerada pelo impacto
das normas comunitárias, insuficientes para gerar as transformações de que o
país carece; na educação, na economia, na administração, na fiscalidade, na
investigação científica ou na saúde, concluindo violentamente que, Portugal se
arrisca a desaparecer, paradoxalmente, afetivamente perdido, como toda a
Europa! Afinal, a tal democracia dos afetos socialmente nociva no antigo
regime, parece ser, agora, necessária à fuga das vicissitudes da entropia
cultural europeia. Conclui polemicamente prevendo que a abertura de Portugal
pelas “vias largas que nos unirão à Europa” acabarão com as fronteiras da
nacionalidade e com o desvanecimento do país. Percebendo-se a ideia,
consequência do federalismo encetado com os Tratados de Maastricht e de Lisboa
à revelia das populações, fica por esclarecer o desejo de José Gil, emergindo
aqui, a sua alegada fraca inscrição na cultura patriótica lusa.
O medo, será pois, uma das causas da não ação dos portugueses de hoje;
ao medo disciplinar do passado, vertical, sucedeu o medo difuso, horizontal da
sociedade de controlo. Aqui radica essa coisa do “vamos andando”, “vamos a
ver”, “seja o que Deus quiser”, “vou andar por aí”; da dificuldade em assumir o
desconforto do positivismo social, do compromisso público com propósitos bem
definidos, adotando uma postura de falsa cordialidade. Um temor, que, afinal,
contribui para a baixa competência por falta de audácia, de capacidade de se
reconhecer o que se é. “O medo de não estar altura impera, arruinando as
potencialidades criativas”. Neste contexto, toda a dinâmica de qualificação e
avaliação impulsionado pela União Europeia visando transformar a sociedade
portuguesa está condenada ao insucesso ao retirar-lhe a energia remanescente
que era suposto aumentar. Pode descortinar-se aqui um dos aspetos primordiais
da disfuncionalidade da relação da União Europeia com Portugal, baseada na
imposição de um modelo cuja eficácia pressupõe outro tipo de destinatários. Finalmente,
Jesus Gil, faz uma recomendação que deveria ser levada a sério pelas mais altas
instâncias nacionais e europeias, invertendo o processo atual; “há, primeiro,
que erradicar o medo da sociedade portuguesa. Conquistar a maioridade,
dessubjetivando-se ao enfrentar o acontecimento. Fazer explodir a imagem de si.
Porque todos nós andamos “Pr’aqui” como Álvaro de Campos que dizia que “nunca
conhe(ceu) quem tivesse levado porrada/Todos os meus conhecidos têm sido
campeões em tudo.”
Ao medo, à burocracia, ao apego a privilégios e velhos hábitos, junta-se
a inveja e o queixume a dificultar a dinâmica de progresso da sociedade
portuguesa. Uma sociedade ainda fechada, mais dependente do elemento humano do
que das estruturas, onde se encobrem os conflitos, se foge ao enfrentamento e
se privilegia o queixume, saída de um regime de humilhação e mutilação das
forças de vida individuais, constitui o ambiente favorável à proliferação da
inveja. Impedida de se expandir, essa força vital transfere-se para a
comunidade, difusa mas individualizável, num misto de medo, ódio,
ressentimento, desprezo, indignação resignada, contra o país, chegando a
constituir uma característica da identidade lusitana. Paradoxalmente, este
contexto gerou uma dinâmica de coesão social negativa contra o país, constituindo
uma espécie de círculo vicioso. Simultaneamente, nas elites culturais
fermentava a crença na falsa e megalómana genialidade pessoal, fenómeno de
compensação imaginária, habitual nas ditaduras. A inveja implica uma relação de
forças em disputa pelo poder, com efeito inibidor, retardador ou desviante de
dinâmicas. Os efeitos da inveja são comparáveis aos da bruxaria, como o
“mau-olhado” influenciando negativamente as pessoas indecisas, vulneráveis, de
“corpo aberto”, característica dos portugueses em geral, de forma osmótica,
impercetível. Do plano dual, uma espécie de transcendência forma grupos de
inveja, fechados, igualitários, comportamentalmente padronizados numa
agressividade latente contra a singularidade, o novo e a originalidade. O
rumor, a calúnia e as múltiplas estratégias de exclusão são os modos de ação
com que o grupo acaba por vencer qualquer tentativa de inovação. Decorrente da
inveja, a incapacidade de admiração caracteriza o comportamento luso, que, ora
ignora ora se excede na adjetivação do objeto.
Algo surpreendentemente, o desaparecimento progressivo do queixume terá
sido consequência da abundância associada ao cavaquismo, dando lugar, no início
do novo século, ao protesto, à contestação e à indignação. Um passo na tomada
de consciência da população dos seus direitos de cidadania e na consolidação da
democracia.
Por outro lado, a falta de autoestima dos portugueses, que não gostam
uns dos outros nem de si próprios, resultará da longa sujeição humilhante,
castradora, ao salazarismo, que teima em prevalecer apesar dos 40 anos de
democracia e cerca de 20 anos de CEE/UE.
A saída deste plasma paralisante passa pela inserção social efetiva de
cada um, mobilizando as correspondentes energias num processo de enaltecimento
pessoal e coletivo, neutralizando a atitude de autoexclusão prevalecente,
cabendo aos governos fazer cumprir a lei e criar todas as condições para tal.
Objetivo, quanto a mim, irrealizável, numa sociedade acorrentada a critérios
eminentemente económicos, geradores de exclusão e vexação, resultantes do
enquadramento fortemente dependente do país no seio da comunidade europeia onde
(não) se inseriu.
Em “O vazio e o pleno”, o autor desenvolve um conjunto de conceitos,
confusos, controversos, de mecanismos individuais e coletivos bloqueadores da
ascensão cultural e criativa do português e do Homem. É assim que faz depender
da capacidade de aceder ao “vazio primordial” o génio da criação do novo, do
“nunca antes criado”, algo inacessível aos portugueses devido à sua aversão à
“ausência” que os impele ao “pleno” preenchimento da existência com a vacuidade
dos pequenos prazeres da vida, afinal, mecanismo da não inscrição. Uma forma de
escapar à ausência de si a si e de si ao mundo. Com origem no passado
longínquo, um entorpecimento da consciência forma uma espécie de nevoeiro sobre
um fundo de estuporização coletiva. Como consequência emerge o burgessismo como
“variante típica lusitana da grosseria”.
Com as exceções de Fernando Pessoa e de Herberto Hélder, o medo do vazio
impede o nosso lado bárbaro de se ligar ao cosmos. Um lado bárbaro sobreposto
por sucessivas camadas de cultura, desde o paganismo grego e latino à cultura
celta e árabe, que o povo não consegue transformar em civilização. Em
contrapartida a cultura popular em todo o país, com especial incidência nas
cidades de Lisboa e Porto, assimilou práticas mágico-religiosas a partir desse
fundo bárbaro, mantendo uma prática de violência social semioculta.
Este contexto terá propiciado o desenvolvimento de uma cultura
humanista, proteiforme, cristã de raiz laica, marxista, socialista, ateia, na
qual o Homem constitui a medida de todas as coisas; um humanismo que define as
fronteiras do bem e do mal. Porém, o fraco conhecimento da natureza humana e,
por conseguinte, do que é bom ou mau para esta, esvazia o discurso humanista,
levantando a hipótese de o descentramento Homem no universo resultar num maior
benefício para o próprio Homem.
É aqui que a minha “fé” no autor sofre um abalo telúrico! Pelas razões
que passo a descrever: antes de mais tenho a convicção de que não há
criatividade no vazio; o vazio material e mental são inatingíveis. A ciência
atual ainda desconhece o que aconteceu nos 300 mil anos que antecederam o
suposto Big Bang!, no plano mental, não creio que o jovem vegetativo que
observei num hospital tivesse capacidade criativa. Não; a criação, a arte, que
afasta o Homem da barbárie e o eleva ao transcendente, nasce do conflito, da
turbulência, da angústia, da compulsão da sobrevivência e da liberdade.
Desconhecemos mecanismos fundamentais da natureza humana, mas sabemos que os
grandes faróis do Homem são a Liberdade e a Transcendência; tudo o mais
converge para aqui. E aqui radica o tal humanismo, que integra todos os
restantes componentes do universo. Criar a partir do nada é tarefa de Deus, não
do homem. Presumir essa capacidade equiparando este a Deus é manifestamente
excessivo. Por outro lado, o raciocínio do autor encerra uma insanável contradição:
a justificação de que o descentramento do Homem do universo resultaria num
maior benefício daquele relativamente ao obtido no âmbito humanista. Mas isto é
uma variante do humanismo!
Quanto aos “pequenos prazeres” em que os portugueses “desperdiçam” a sua
energia; o autor não dá pistas dos grandes feitos que gostaria que aqueles
fizessem. Isto faz-me lembrar a metáfora da guitarra e do copo de vinho
associada, por alguns, aos portugueses. Depois de meditar um pouco concluí que
tal representa uma grande virtude; a capacidade de disfrutar da vida, do mundo,
dos outros! E isso é mágico! O infinito está nas pequenas coisas, mas nem todos
o descobrem. O poder da “inscrição”, a ambição das grandes coisas,
inexoravelmente acarreta o confronto e a abominação da guerra. Prefiro a
guitarra….e, já agora, o copo de vinho.
O capítulo “O trauma terror e medo” valem a obra; com eloquência e
sagacidade, José Gil identifica o ambiente de terror da sociedade atual e as
suas causas. Ao medo imposto pelo Estado Novo, autoritário, disciplinar, com
rosto, sucedeu o medo da mudança da saída do regime; geral, inconsciente,
permanente. A este, sobrepôs-se o medo da sociedade de controlo; um medo difuso,
sem rosto, duma sociedade excludente, normalizante, consensual, impessoal,
proporcionado pelo adoção extensiva e intensiva das novas tecnologias. A
sobreposição destes dois medos , constitui o “duplo esmagamento” causa do
terror que se vive na sociedade atual.
“Mais uma vez, é naturalmente, espontaneamente, que pensamos de uma só
maneira, caminhamos por uma só via, como se fosse evidente que só estas
existem. Porque as outras “possíveis” pertencem ao passado e verificaram-se
impossíveis; e as que se apresentam como diferentes e reais levam diretamente à
exclusão social. As alternativas atuais não são impossíveis, muito simplesmente
não existem.”
“Há certamente um “totalitarismo” próprio das “sociedades de controlo”
(Foucault, Deleuze) atuais. A aplicação das novas tecnologias a todo o tipo de
serviços, por exemplo, implica o imperativo de cumprir os regulamentos, sob
pena de exclusão. A globalização acentua e generaliza este tipo de padrões
únicos de comportamento – na necessidade de responder às exigências da
produtividade do trabalho, de seguir as vias impostas pela funcionalidade dos
serviços de saúde, de educação, de lazeres. Um exemplo emblemático já utilizado
em Portugal, nos serviços prisionais, a pulseira magnética de localização a
distância, que o prisioneiro levará consigo sempre que se ausente da prisão. (Em
breve seremos todos prisioneiros em liberdade, controlados a distância). O
cidadão só pode submeter-se e aderir, em nome da lógica funcional do sistema de
regulamentação da vida social, pública e privada. Caso contrário, surge,
automaticamente também, a ameaça de exclusão.
A exclusão é, efetivamente, a ameaça que os portugueses vivem no
quotidiano; o dogma da produtividade, assumindo múltiplas facetas, resulta na
concentração económica, na destruição das economias locais, no abandono do
interior, no macrocefalismo das grandes urbes e no centralismo. Daqui resulta
todo um cortejo de consequências nefastas, desde a não inscrição, aos
recorrentes incêndios, à pobreza das periferias e, sobretudo, à profunda
desumanização do excluído, transformado num pária social. Paradoxalmente, num
regime fundado sobre o princípio da liberdade do indivíduo, o medo de infração
da norma conduz à paralisação daquele, perpetuando o fenómeno da não inscrição.
Fica assim comprometida a capacidade de pensar e agir diferente, a
criatividade, a singularidade, que poderia catapultar a sociedade para um novo
futuro, condizente com a efetiva prática da liberdade. Um paradoxo cuja leitura
não pode ser outra que não seja a de reconhecer a submissão do princípio da
liberdade ao do poder das elites.
Peca por omissão, o autor, ao não apontar vias para a desblindagem deste
ambiente; a alteração do conceito de produtividade geral, englobando fatores
económicos ou, até, a subalternização do princípio da produtividade aos valores
sociais. Em última análise terá de se questionar o regime vigente e propor
correções, alterações ou o seu termo. Um regime que induz a autocensura dos
cidadãos transformando-os em prisioneiros voluntários merece extinção.
O último capítulo “Trauma português e o clima atual” mostra o que poderá
ter sido política a causa desta obra por constituir um tremendo libelo
acusatório ao Governo de Santana Lopes, acusando-o de inconsequente, irresponsável,
populista, mediocrático, sustentado em velhas fórmulas salazaristas e capaz de
pôr em risco a própria democracia. A falta de reação popular a uma espécie de
recidiva autoritária, faz temer o futuro declínio da democracia nas mãos de um
qualquer Berlusconi.
A curiosidade é que a contestação política
na época, de todos os setores da esquerda e até do seio do seu próprio partido,
foi tão feroz que o Presidente da República Jorge Sampaio, sentiu-se legitimado
a dissolver um Parlamento apesar da maioria estável, lançando o país numa
aventura suicidária que acabaria com a crise de 2008, em que o governo, para
evitar a insolvência, entregou a soberania aos supervisores europeus e mundiais
do FMI. A curiosidade ainda reside na omissão de caracterização do governo de
Guterres, que também não acabou o segundo mandato, abandonando o posto, com o
país paralisado no alegado pântano que ele próprio criara com o diletantismo da
sua governação, semeando os ventos que chegariam, implacáveis, em 2008. Se não
há motivações políticas neste trabalho, não andarão muito longe.
Contudo, continuamos condenados à não-inscrição por falta de espaço
público. O buraco negro deixado pelo salazarismo que bloqueou o “conatus” a que
referiu “Espinoza”, foi agora ocupado pelo aparelho mediático, em especial a
televisão, proporcionando a distorção da realidade, com o poder de transformar a
aparência de atos e pessoas ignóbeis em algo de louvável e até, exemplar. O
domínio do poder político desse espaço constitui uma nova forma de
totalitarismo; mais suave, mais consentido, mas simultaneamente gerador de
novos medos e do duplo-esmagamento do qual emergem vários microterrores.
Finalmente, Gil conclui ter sido sua pretensão mostrar a fragilidade da
nossa democracia, identificando duas forças lusas, que se desenvolvem impercetivelmente
e que poderão contrariar este declínio; uma, a capacidade de fluir entre duas
forças que nos imobilizam, outra, o nosso sentido lúcido do real, do pensamento
claro proveniente da desconfiança secular do povo relativamente aos
governantes.
Considerações demasiado vagas e, a meu ver, algo desajustadas, tendo em
conta que o povo já não é o mesmo. Esse povo que desconfiava compulsivamente dos
governantes era constituído pela imensa massa da sociedade civil, amordaçada,
humilhada pela administração pública dum regime autoritário. Hoje uma boa parte
do povo está integrado no tremendo aparelho administrativo democrático,
enquanto outra boa parte, beneficiária do Estado Social, é cúmplice dos poderes
instituídos. Uns e outros legitimam a subjugação “democrática” da sociedade
civil, pelos poderes políticos instituídos, constituindo o paradoxo das
democracias totalitárias modernas.
Concluo, com a convicção de que, nesta obra, José Gil, foi mais político
que filósofo e que, apesar disso, é um exemplo do que o espaço público carece
urgentemente; do fora, de gente de outras realidades, preferencialmente mais
avançadas, descomprometida do circulo vicioso interno construído pelos partidos
com que dominam todo o espaço público, retirando aos cidadãos a iniciativa de
expressão, asfixiando-os, remetendo-os a uma imaturidade infantil permanente. A
democracia está em declínio, em última análise, porque os autoproclamados
democratas instalados no poder têm medo do povo livre, apesar de,
permanentemente, afirmarem o contrário.
Peniche, 26 de Agosto de 2018
António J. R. Barreto